TRÊS AMIGAS (Emmanuel Mouret, 2024)


 
Parece uma extensão de Chronique d'une liaison passagère e Love Affair(s) com olhar menos formalista de uma teia de amores e tragédias que se costuram em espelhamentos mais acessíveis - pelo prisma comercial. É Mouret mais interessado em desfiar os gestos mentirosos de um teatro edestituir a moral de maneira nova em seus filmes e com isso vemos de suaelucubração um resultado mais afiado e crítico da rotina social e seuspilares mais básicos como casamento, amigos e emprego.

ARMADILHA (M. Night Shyamalan, 2024)

 

Arrisco dizer que Shyamalan amplia sua relação com o ilusionismo, o mistério e a farsa em “Armadilha". Trata-se de jogar o público para um lado, construir uma relação de tensão - principalmente de forma gráfica - e depois jogá-lo para o outro lado, como se estivéssemos em um novo filme. É reaproveitar a metodologia hitchcockiana com pistas, aliadas à modernidade, e depois escondê-las em um thriller que usa caminhos simbólicos para construir uma fuga cerebral entre a urgência e a memória. Eu também arriscaria dizer que a espinha dorsal de tudo isso é o sarcasmo, o que pode parecer incoerente para um filme de suspense em diversas frentes, mas Shyamalan já mostrou antes que seu efeito não se limita a uma sequência final e através dessas lacunas ele mostra os pontos fortes e fragilidades dos personagens, principalmente do protagonista, Cooper, assustador do início ao fim.

A TRAVELER'S NEEDS (Hong Sang-Soo, 2024)

 


Há uma cena em A Traveler's Needs que abre um fluxo de relações nos filmes de Sang-soo, especialmente nos filmes a partir de HaHaHa em diante. Há um corpo que a câmera filma e ao voltar ao ponto inicial, este corpo não está mais lá. Uma magia infantil que desbloqueia os códigos de linguagem que é o mote da trama e que pode ser uma barreira para os personagens em como a comunicação cria ruídos, mas na verdade, é uma travessia direta para a relação de um mundo particular, um conto de fadas que vemos e revemos pelo menos duas vezes por ano.  Desta vez não há soju ou gatos, mas há bebida probiótica e um cachorro - dono de um dos pouquíssimos "zooms" do filme -, motos que ocupam o centro da cena durante performance de Huppert e um homem que ignora a presença de uma mulher em cena, o que subverte a lógica e cerne de boa parte dos filmes de Sang-soo e, o que é ainda mais engraçado, é que ela garante suas vantagens no flerte. Um divertido jogo de subversões da própria forma.

HITMAN (Richard Linklater, 2023)

Este é um filme que coloca Linklater mais próximo de Woody Allen do que um escultor do tempo em sua extensa filmografia e muito interessante notar que há um interesse em quebrar a própria chave de autoria, de execrar este olhar inclinado às assinaturas e nas réplicas construir um filme que se trata justamente do falso, do absurdo, do fantasioso. O espetáculo da mentira é triplo, dos protagonistas, coadjuvantes e do próprio Linklater que falseia a linguagem através de um "filme americano" de reconstruções de planos e movimentos de câmera ou, falando da trama em si,  da composição de um projeto perfeito que sempre será atravessado pela ideia de fac-símile. Se "Hitman" é, antes de tudo, um filme-réplica, Linklater por vezes emula mesmo Allen, dos principais nomes que pouco mudou de seus formalismos artesanais - curiosamente quando fez filmes de suspense - e nos leva para um lugar muito prazeroso que é o de revisitar, redescobrir ou apaixonar-nos novamente pelo cinema.

LOVE LIES BLEEDING (Rose Glass, 2024)


Longe de suas sacadas de marketing, Love Lies Bleeding é um filme de intensa construção de ganchos e sugestões para um clima tenso entre caçadas e acerto de contas e que é o que realmente funciona aqui. O filme se aproxima, neste sentido, a um thriller noventista barato cheio de figuras caricatas que Rose Glass condensa muito bem em seus símbolos necessários para um filme relativo às emulsões entre amor e violência. Já a criação de analogias envolvendo corpos e seus valores, capacidades e as exortações eróticas não oferecem grande valor neste caso, ainda que funcionem como grande atração. Glass, deste modo, brinca com o crescendo de suas representações corpóreas e vai para o mundo fantástico com desejos de criar um aporte extremo em seu discurso - o que, na verdade, está mais para uma equação rasa, afinal ela ignora as diversas camadas existenciais para dialogar com o prazer - ou choque - visual de forma que a vulgaridade que seu thriller entregara anteriormente.

MELHORES FILMES DE 2023

Mangosteen de Tulapop Saenjaroen

Mais um longo post com os melhores filmes do ano. São os melhores filmes lançados entre 2021-23 com mais de 40 minutos de duração. Espero que vocês tenham paciência para ler tudo. 2023 foi um ano bem interessante para o cinema de modo geral. Bressane lançou dois filmes, Herman Yau colocou quatro filmes na bolsa e Sang-Soo, claro, lançou mais dois. Depois de lançar seis filmes em 2022, Lucía Seles lançou "apenas" dois filmes este ano. Surpreendentemente Takashi Miike lançou apenas um e Sion Sono e James Benning passaram em branco em 2023, algo bem raro para ambos. Friedkin e Vecchiali partiram, mas antes lançaram seus últimos filmes. Os blockbusters americanos agora dividem de vez os holofotes com os grandes lançamentos japoneses, chineses e indianos a exemplo de Godzilla Minus One, Jawan, Pathaan e Raid on the Lethal Zone e, claro, tivemos ótimos lançamentos por aqui como O Dia que te Conheci, Estranho Caminho e Tia Virgínia.
 
 

Enfim, vamos  a eles:

 
 100. Robot Dreams (Pablo Berger, 2023)
 Fábula à inexatidão da vida.

99. Building Family Ties (Pauline Bastard, 2023)
O filme de férias francês na versão estrutural.


98. The Dead Remain with Their Mouths Open (I morti rimangono con la bocca aperta, Fabrizio Ferraro, 2022)
A guerra no primeiro plano.


97. Family (Dan Palathara, 2023)
O cotidiano como campo para a hipocrisia cristã.

96. Essential Truths of the Lake (Lav Diaz, 2023)
Todos os tipos de violência.


95. Into Particles (Jinho Myung, 2023)
Uma nova história através da observação.

94. Monsters of California (Tom Delonge, 2023)
Aventura teenager desconjuntada e muito honesta.
 
93. Iké Boys (Eric McEver, 2022)
Referências sortidas para divertidíssima fábula infantil.
 
92. How to Blow Up a Pipeline (Daniel Goldhaber, 2022)
Decupagem a favor da tensão e da mensagem.
 
91. The Urgency of Death (Lucía Seles, 2023)
Uma aventura para a diretora e um filme em paralelo.
 
90. Muertes Y Maravillas (Diego Soto, 2023)
Um singelo olhar sobre o processo de despedida.
 

89. Master (Mariama Diallo, 2022) 
Pungência e gênero para revelar as estruturas do racismo.
 
88. Inside the Yellow Cocoon Shell (Pham Thien An, 2023)
O luto que reside entre Reygadas e Apichatpong.
 

87. The Caine Mutiny Court-Martial (William Friedkin, 2023)
No rigor e força que as palavras exercem.
 

86. The Human Surge 3 (Eduardo Williams, 2023)
Jogo da vida através do Street View.

85. Wake Up, Wendy (Jonathan Christian, 2022)

Filme-OVNI do ano: um romance sci-fi com estética de loja de departamentos.

 84. Our Body (Claire Simon, 2023)

Crônicas de uma observadora.

 83. Moto (Gastón Sahajdacny, 2022)

Memórias do espaço.

 82. Fallen Leaves (Aki Kaurismaki, 2023)

Dos mais leves e divertidos lamentos de Kaurismaki.

 81. Retratos Fantasmas (Kleber Mendonça Filho, 2023)

Carta à memória e uma filmografia explicada.
 
80. Espaço Liminar (Gabriel Papaléo, 2023)

Albert Pyun, amor e a cinefilia carioca. 
 
79. La Práctica (Martin Rejtman, 2023)

Corações partidos e ossos quebrados.
 
78. How to Have Sex (Molly Manning Walker, 2023)

O horror e suas consequências.

77. First Time [The Time for all but Sunset - Violet] (Nicolaas Schmidt, 2021)

Reduzir tudo à tensão.

76. Mad Fate (Soi Cheang, 2023)

Subvertendo a posição da vilania.

 75. Concrete Valley (Antoine Bourges, 2023)

Belo drama sobre curtos-circuitos em relações desgastadas.
 
74. Bad Axe (David Siev, 2022)

Nas estranhas do fascismo americano.

73. Babylon (Damien Chazelle, 2022)

Histeria digital para um tempo analógico.

 72. Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (Spider-Man: Across the Spider-Verse, Joaquim Dos Santos, Justin K. Thompson, Kemp Powers, 2023)

Declarar-se produto de tempos ansiosos.

 71. Diary of a Fleeting Affair (Chronique d'une liaison passagère, Emmanuel Mouret, 2022)

Amores volantes e a subversão das emoções.

 70. Nação Valente (Carlos Conceição, 2022)

Ilusionismo armamentista.

 69. Passages (Ira Sachs, 2023)

O ego como agente do caos e a implosão de uma relação.

 68. Yellow Saturday (Les rendez-vous du samedi, Antonin Peretjatko, 2021)

O "Céu Socialista" dos Coletes Amarelos.

 67. Millie Lies Low (Michelle Savill, 2021)

Perder a direção em função de likes e aprovação.

 66. I Like Movies (Chandler Levack, 2022)

A frágil certeza da cinefilia.

 65. Dupla Jornada (Day Shift, J.J Perry, 2022)

Um midnight movie ensolarado.

 64. Sofia Foi (Pedro Geraldo, 2023)

Contravenções estéticas e a simplicidade no encadeamento narrativo.

 63. Safe Place (Sigurno Mjesto, Juraj Lerotic, 2022)

Sobre a dor de estar vivo.

 62. Smoking Causes Coughing (Fumer fait tousser, Quentin Dupieux, 2022)

Fumar: ouvir e contar histórias enquanto o mundo acaba.

 61. Unseen (Yoko Okumura, 2023)

Novas tecnologias como mediadoras da tensão.

 60. Here (Bas Devos, 2023)

Um poema sobre pertencimento.

 59. Please Baby Please (Amanda Kramer, 2022)

O filme perdido de John Waters para a Miramax. 
 
58. Smog in Your Heart (Lucía Seles, 2022)

Intromissões autorais.

 57. One Fine Morning (Un beau matin, Mia Hansen-Love, 2022)

Nascer, morrer e uma vida entre os dois.
 

56. Leo (Lokesh Kanagaraj, 2023)
Engrenagens do exagero e um épico de ação.

 55. Raid on the Lethal Zone (Herman Yau, 2023)

Guerra ao tráfico e um disaster movie muito bem equilibrados.

 54. Ciclos da Criação (Cycles of Creation, Guli Silberstein, 2023)

A História ao fechar dos olhos.

 53. Priscilla (Sofia Coppola, 2023)

Melodrama às avessas.

 52. The Last Days of Humanity (Gli ultimi giorni dell'umanità, Alessandro Gagliardo, Enrico Ghezzi, 2022)

Só há tempo para crer na imagem.

 51. The Sea and It's Waves (La Mer et ses vagues, Liana Kassir, Renaud Pachot, 2023)

Dor da despedida na penumbra do abandono.

50. Youth (Spring) (Wang Bing, 2023)

A deterioração da vida em nome do lucro.

 49. Fragments of Paradise (KD Davison, 2023)

Aproximar-se de um mestre e da felicidade.

 48. Burning Fire (Füür brännt, Michael Karrer, 2023)

Conjunto de afetos, corpos e palavras: amizade em contemplação.

 47. Leme do Destino (Júlio Bressane, 2023)

Sedução da arte.

 46. Desaparecida (Missing, Nicholas D. Johnson, Will Merrick, 2023)

Desktop noir que dança bem conforme as exigências comerciais.

 45. Os Deliquentes (Los delincuentes, Rodrigo Moreno, 2023)

A corrupção e suas ironias.

 44. Menus Plaisirs - Les Troigros (Frederick Wiseman, 2023)

Pequenos mundos feitos à mão e um universo composto pela câmera.

 43. Scarlet (Pietro Marcello, 2023)

Amor e ausência na mesma nota.
 
42. My Falcon (Mein Falke, Dominik Graf, 2023)
Escoar a indomável dor.
 

41. In Our Day (Hong Sang-Soo, 2023)
Hong no divã à procura da beleza no mundo.

 40. Mangosteen (Tulapop Saenjaroen, 2023)

Fluxos e associações certeiras sobre o nosso fim.
 

39. Monster (Hirokazu Kore-Eda, 2023)
Emoções em estilhaços.

 38. Assasinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon, Martin Scorsese, 2023)

Mise en scène da corrupção.

 37. No One Will Save You (Brian Duffield, 2023)

Coreografias do medo.

 36. Evil Does Not Exist (Ryusuke Hamaguchi, 2023)

A ideia do capital para o progresso aniquilada pela tradição.

35. Testemunhas Silenciosas (Silent Witness, Luis Ospina, Jerónimo Atehortúa Arteaga, 2023)

Construir tributos e narrativas possíveis pelos arquivos.


34. Weak Rangers (Lucía Seles, 2022)
Uma nova narrativa para cada plano.

33. We Made a Beautiful Bouquet (Nobuhiro Doi, 2021)

Grande trabalho de controle em um melodrama.
 

32. Tia Virgínia (Fabio Meira, 2023)
Teatro do caos familiar à brasileira.

31. After (Anthony Lapia, 2023)

Fugas da realidade.


30. In Water (Hong Sang-Soo, 2023)
O mais simples e radical filme de Sang-Soo.

29. Asteroid City (Wes Anderson, 2023)

Reutilizando sensibilidade e humor para um sci-fi teatral.


28. Estranho Caminho (Guto Parente, 2023)
Enfrentando fantasmas.

27. Culpa e Desejo (L'Été Dernier, Catherine Breillat, 2023)

Limites e tensões.

26. O Dia que Te Conheci (André Novais Oliveira, 2023)

Crônica dos pequenos gestos.
 

25. Are You There God? It's Me, Margaret. (Kelly Fremon, 2023)
Celebração à melhor fase da vida.

24. Shin Kamen Rider (Hideaki Anno, 2023)

Ética samurai e Suzuki nos poros.
 

23. One Way (Andrew Baird, 2022)
Fuga minimalista.

22. May December (Todd Haynes, 2023)

Angústias e espelhos ou Persona Netflix.

 
21. Batem à Porta (Knock at the Cabin, M.Night Shyamalan, 2023)
Subverter à própria filosofia.

20. Human Not Human (Natan Castay, 2023)

Funções humanas em um mundo de computadores.


19. Revolution +1 (Masao Adachi, 2022)
A vitória da bandeira vermelha.

18. Andança: Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho (Pedro Bronz, 2022)
  
Como é bonita a força do arquivo para a cultura popular brasileira.

17. A Invenção do Outro (Bruno Jorge, 2022)
Observar o eterno western que é o Brasil.

16. Do Not Expect Too Much from the End of the World (Radu Jude, 2023)

Sorrir para o desespero e empenhar-se para o lucro alheio.
 
15. Afire (Christian Petzold, 2023)
Desaparecer perante a morte.

14. Uma Noite Perigosa na Ilha de Vulcano (Darks Miranda, 2023)

Sci-fi pelos extremos.

13. Allensworth (James Benning, 2022)
O mais incisivo Benning desde Landscape Suicide.

12. Showing Up (Kelly Reichardt, 2022)
A beleza do banal ganha novos contornos.

11. Godzilla Minus One (Takashi Yamazki, 2023)
Guerras concretas, simbólicas e um blockbuster grandioso.
 
10. Muro dos Mortos (Ler Mur des Morts, Eugène Green, 2023)
Poesia do espírito e morte do coração.

 
09. John Wick: Baba Yaga (Chad Stahelski, 2023)
 Quando o próprio filme é uma poderosa atração.

08. The Holdovers (Alex Payne, 2023)
O conceito de família em um filme de Bogdanovich ou Ashby.

07. Master Gardener (Paul Schrader, 2022)
O mal como manipulação do mundo natural ou o filme Cristão de Schrader.

06. Wanton (Victor Dubyna, 2023)
Tscherkassky no inferno digital.

 
05. A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (Júlio Bressane, Rodrigo Lima, 2023)
Monumento à memória.

 
04. Bonjour la langue (Paul Vecchiali, 2023)
Reconstruir relações: pai, filho, imagem e linguagem.

 
03. Darkness, Darkness, Burning Bright (Gaëlle Rouard, 2022)
Ruínas e aparições.

 
02. Self-Revolutionary Cinematic Struggle (Sogo Ishii, 2023)
Sempre haverá a escuridão do cinema para novos mundos.


01. Close Your Eyes (Victor Érice, 2023)
Cinema para atravessar o próprio desaparecimento.

*

Pedro Tavares é diretor e curador do Festival ECRÃ, realizador, editor da revista Multiplot, membro da Abraccine - Associação Brasileira de Críticos de Cinema e mestre em estudos contemporâneos das artes pela UFF-RJ.

 

TRÊS AMIGAS (Emmanuel Mouret, 2024)

  Parece uma extensão de Chronique d'une liaison passagère e Love Affair(s) com olhar menos formalista de uma teia de amores e tragédi...