VI Semana dos Realizadores

Rápidos comentários sobre os longas-metragens vistos na VI Semana dos Realizadores:

Branco Sai, Preto Fica (Idem, Brasil, 2014) de Adirley Queirós

 Ventos de Agosto (Idem, Brasil, 2014) de Gabriel Mascaro

 A Vizinhança do Tigre (Idem, Brasil, 2014) de Affonso Uchoa

Através da rotina de quatro jovens da periferia de Minas Gerais, o que se vê são abordagens que fogem do senso comum do cinema contemporâneo quando o assunto é a violência. O afeto em cada diálogo, o pensamento ingênuo e até mesmo infantil que cerca a cultura do terror e das barbáries oriundas da marginalidade constrói personagens de extrema carisma, transparecendo a delicadeza na direção de Uchoa para adormecer o tema, os colocando ante qualquer julgamento.

Lacrau (Idem, Portugal, 2013) de Joao Vladimiro

No campo imaginário João Vladimiro evoca o canto da natureza como sentido emergencial para o homem. Os planos dialogam com as intervenções egocentristas e da soberania do Criador sobre a criatura. Se faz um canto do divino através das mais dolorosas sequências contemplativas e subjetivas à perda. Aqui, se elimina a história oral para se aproximar da poesia. 
 
Sinfonia da Necrópole (Idem, Brasil, 2014) de Juliana Rojas

Como espelho de qualquer metrópole brasileira, a necrópole é vítima do crescimento vertical e da expansão comercial e para conveniências comerciais muitos perderão suas moradias. De fácil associação e diluído na diversificação de gêneros, o filme é um manifesto bem humorado que se apropria do fantástico para emular as mazelas do real.
 
 Batguano (Idem, Brasil, 2014) de Tavinho Teixeira

Filme entregue ao denso trabalho dramaturgico na apropriação da decadência (e consequentemente o ato de envelhecer) em um interessante jogo de associações da cultura pop americana e na sinalização do apocalipse. Do culto à imagem ao fascínio que fragmentos causam - através da infindável troca de canais - , Tavinho Teixeira traça a tênue linha entre o significado do real e da ficção - ou seja, o que de fato acreditamos - através da afirmação, o mesmo princípio induzido ao espectador. É preciso imergir na fantasia, assim como Sinfonia da Necrópole, para a consciência do terror que assola o real.

Com os Punhos Cerrados (Idem, Brasil, 2014) de Pedro Diógenes, Luiz e Ricardo Pretti 
A partir das manifestações do ano passado, Pretti & Parente fazem a versão "maio de 1968" para a mais significativa resposta popular dos últimos anos. Munido de inocência sobre a palavra (muito mais a escrita que a ouvida) e de tendência aguda ao diálogo com diversificadas formas de arte - marginais e nem sempre digestivas -, o filme é pertinente pelo gesto inflexivo sobre continuidade e postura política e filosófica.

 A Misteriosa Morte de Pérola (Idem, Brasil, 2014) de Guto Parente e Ticiane Augusto Lima
Não ultrapassar os limites do campo é impossível quando é sabido que Guto e Ticiane formam um casal - na tela e fora dela - reforçando o conto de terror como uma história de amor onde a distância justifica o gênero. A Misteriosa Morte de Pérola emula o mergulho completo de Brisseau (ou Franju e até mesmo Eugène Green) ao cinema de terror, onde vida e morte se privam na imagem -  através da imagem fantasmagórica da TV ou de uma câmera VHS. Seus enigmas, estes sim presos às formalidades possíveis de comparação aos cineastas franceses, são construidos no extracampo e no chiaroscuro em controle absoluto do tempo e de atmosfera.

Homem Comum (Idem, Brasil, 2014) de Carlo Nader
 Corajosa dialética de questões fundamentais para o sentido da vida em função da montagem. Carlos Nader mescla a questão do real, do corte, da encenação e o jogo entre passado/futuro enquanto acompanha por vinte anos a vida do caminhoneiro Nilsão. Nader encontra a formalidade entre tantas opções e metáforas de vida e morte utilizando A Palavra de Carl Dreyer como uma certeza e o que exibe é  insegurança em resposta ao seu protagonista, este que sempre foi tão seguro do material que Nader gravara. 

 Noite (Idem, Brasil, 2014) de Paula Gaitán

Gaitán faz o caminho inverso a de Exilados do Vulcão para chegar ao mesmo ponto de sua obra anterior - um jogo perverso de sensações e sugestões de interpretação de gêneros. Noite tem muito da atmosfera de ficção científica e desta vez, através do uso da artificialidade (luzes de neon, eletrônicos, microfones) e o decreto do fim de uma linha narrativa, Noite decai na força das canções e da montagem, ora acelerada como um vídeo-clipe e ora muito próxima de uma instalação. 

 Ela Volta na Quinta (Idem, Brasil, 2014) de André Novais Oliveira

O tempo como alegoria, partindo da justificativa da observação do próprio e seus efeitos - um casal planeja casar, outro morar junto e outro, separar. Os planos, sempre expandidos e compõem um só arco dramático, apoiado na ternura já nostálgica e do pensamento que o grande momento ficou para trás. Este sentimento geral não permite que o filme encontre um caminho melancólico, pelo contrário, o filme de André Novais Oliveira é extremo na naturalidade, em forma e ressonância.  

 Brasil S/A (Idem, Brasil, 2014) de Marcelo Pedroso

Manifesto sobre as duplicidades de  um país em desenvolvimento que ainda procura "Ordem e Progresso". Pedroso sai da verborragia e abdicação da autoridade de Pacific e parte para o controle e confiança na força das imagens, estas que ressoam promessas de qualidade de vida e que criam mazelas irreversíveis. O impacto que a sátira traz no agudo discurso de apresentação não se sustenta na repetição da fórmula e se afrouxa rapidamente.

 Dois Casamentos (Idem, Brasil, 2014) de Luiz Rosemberg Filho

Partindo de contrastes - imagéticos, filosóficos e principalmente dramatúrgicos -, o retorno de Luiz Rosemberg Filho ao cinema depois de 32 anos se faz no gesto de entrega ao pessimismo que consome o mundo e seu iminente fim traduzido na espera de duas noivas ao mais depressivo protocolo social. Não só o casamento parece uma visita ao inferno, mas toda escuridão ao redor das atrizes pedem a mudança das regras e a entrega aos desejos da carne.

Ventos de Agosto (Gabriel Mascaro, 2014)



A relação a partir de extremos na filmografia de Gabriel Mascaro que se aproximam a cada filme – ainda que Doméstica (2013) ofereça espaços para se discutir o oposto – chega ao seu limite em Ventos de Agosto. A noção que se ultrapassa fronteiras entre o caráter documental e a ficção em seu feitio não é novidade desde Avenida Brasília Formosa (2010), mas a maneira com que Ventos de Agosto dialoga com a forma de produção é interessante; narrar o falso e observar a verdade com o que se encontra pelo caminho, como Eduardo Coutinho fez, integralmente verdadeiro, em O Fim e o Princípio (2005). 

Há em cada quadro do filme a consciência que os limites entre qualquer consideração envolvendo o moderno e o primitivo devem ser colocados abaixo. Na mesma maneira há a imposição de um olhar que construa um macrocosmo a partir das motivações e pensamentos exibidos. O que se apresenta rapidamente é uma rotina pacata que evoca o conformismo em diálogos curtos (o embate entre avó e neta sobre seus destinos, por exemplo) ou a sensação de dever comprido após um dia de trabalho. Ao redor do paraíso há a dor pulsante e o silencio que corta para os que almejam ir para o outro extremo do caos. 

Ventos de Agosto parte de dicotomias muito simples que exigem a interpretação do micro como eixo de expansão de um sentimento mútuo, ainda que seja de um mundo particular, muito afastado, onde nem a polícia consegue chegar. Shirley cuida da vida, se preocupa com o que há lá fora em momentos de extrema contemplação, com seu corpo e com uma suposta carreira de tatuadora. Jeison está em fuga, sempre embaixo d’água ou concentrado com seu trabalho. Os extremos se encontram literalmente dentro da maior fonte de renda do vilarejo: os cocos. 

A presença de Gabriel Mascaro como personagem e catalisador destes extremos serve como fina ironia – ele é o que expõe o diálogo com o “acaso”, no qual o personagem se relaciona com moradores do vilarejo, vê e ouve a ação da natureza e causa estranheza por sua profissão de “captador do vento”. A presença do captador de ventos dá o sentido de preservação de Shirley, que se amplifica a cada quadro em que Jeison é protagonista. Ele está obcecado pelo que é estabelecido, pela necessidade de cumprir sua tarefa, de realizar um dever subentendido como seu. Há nesta obsessão o espaço suficiente para discutir a invasão do pensamento urbano acerca dos deveres de cidadania e o fim de uma cultura de entrega às divindades, ainda que se mostre presente, mas prestes a diluir. 

Shirley é o desejo oposto; não se conforma, usa a imaginação e os porcos como cobaias para alçar voo, claro, sem nunca sair do lugar. Se o vento serve de catapulta para a exposição de desejos e da opressão, Mascaro faz questão de mostrar que redemoinhos sempre se formarão, mesmo quando o limite é ultrapassado, quando as montanhas ao redor são vencidas, ou até mesmo quando a morte insiste em aparecer. Se faz desta maneira um conto muito singelo sobre conformismo e resistência, onde o vazio e o silêncio servem de amplificadores para um grito que somente fones de ouvido podem captar. 

Ventos de Agosto (Idem, Brasil, 2014) de Gabriel Mascaro

Lançamentos em Video on Demand

Mais uma leva de lançamentos em Video on Demand no Brasil que aos poucos ganha uma identidade - e que parece mais interessante que o mercado de cinema. O destaque desta leva vai para Mão na Luva de José Joffily, não pela qualidade e sim e pelo lançamento na plataforma antes mesmo do lançamento nos cinemas. Comentários sobre os lançamentos mais relevantes abaixo.

Temporário 12 (Short Term 12, EUA, 2013) de Destin Cretton

Cretton utiliza os moldes do cinema independente contemporâneo (em especial aquele adotado por Sundance) para um híbrido interessante de comédia e terror na adaptação de seu curta documental produzido em 2008. Este objeto estranho tem como função ser sutil para abordar temas delicados sem precisar de estepes melodramáticos e exercer a função básica do filme, que é o de estabelecer o estado de tensão iminente dentro de uma casa de recuperação. 

Locke (Idem, Reino Unido, 2013) de Steven Knight

Filmes que se passam em um espaço cênico mínimo são sempre atraentes. Locke se constitui de um homem, um carro e dezenas de conflitos. O trabalho de Steven Knight se resume a estabelecer a atmosfera sobre o arco dramático apoiado no mais frágil dos traumas do protagonista em relação ao externo.  

Traição (Tricked, Holanda, 2012) de Paul Verhoeven

Maior que as frequentes autorreferências em Traição, a ironia que costura este diagnóstico social extremamente pessimista tem prazo. E por isso Verhoeven utiliza apenas 50 minutos - provavelmente exigência do conceito televisivo ou a mais branda piada - para apresentar e desenvolver um mosaico  sobre a corrupção das mais variadas formas. 

Land Ho! (Idem, Islândia/EUA, 2014) de Aaron Katz e Martha Stephens 

Retrato bem-humorado sobre o processo de envelhecimento e que esconde meandros melancólicos ao acompanhar a viagem de dois homens pela Islândia. O peso da terceira idade e a iminência da morte são assuntos implícitos na relação distópica entre dois amigos que serve muito bem como contraponto aos filmes adolescentes, que cercam a insegurança e a inconsequência desta fase da vida.


Mão Na Luva (Idem, Brasil, 2014) de José Joffily e Roberto Bomtempo

Projeto pouco ambicioso e simples de Joffily e Bomtempo que serviria muito bem de contraponto a Na Carne e na Alma de Alberto Salvá. O filme é baseado na peça teatral homônima de Oduval Viana Filho e narra em duas vias o processo de aproximação e separação de um casal de forma torta, focada na explosão dramatúrgica que a separação matrimonial oferece. Concentrado no processo de descarrego onde ambos liberam seus segredos e monstros do passado, o filme está por todo momento em corda-bamba por se construir de fragmentos - personagens, ambientes - estritamente fabulosos, independente da proposta realista em sua feitura - planos-sequência, closes, etc.

Os Reis do Verão (The Kings of Summer, Reino Unido, 2013) de Jordan Vogt-Roberts

Pode-se resumir Os Reis de Verão como a reimaginação das aventuras adolescentes oitentistas em um ambiente renovado. O filme de Jordan Vogt-Roberts coloca o trio adolescente deslocado em uma floresta, a usando como eixo principal para conflito e redenção que se resolviam antigamente em locais como o colégio ou faculdade. 


O Último Sacramento (The Sacrament, EUA, 2013) de Ti West

Ti West faz o desenho da rotina eclesiástica e a subjetiva chantagem emocional na transformação do éden em inferno em um filme que mal se justifica. Ainda que funcione como narrativa e tenha seu cunho definido lentamente, seu movimento está sempre na parcialidade e na função sensacionalista da câmera.

 O Ato de Matar (The Act of Killing, Dinamarca/Noruega/Reino Unido, 2012) de Joshua Oppenheimer e Christine Cynn

Joshua Oppenheimer oferece a dois integrantes da "milícia oficial" da Indonésia a troca implícita entre o desejo e a verdade. A barbárie justificada por um conceito - oposição e cinema, vem da reconstituição de assassinatos que culminaram num dos maiores banhos de sangue da história. Oppenheimer desafia a vaidade e a consciência de seus "personagens" e de seu público através da linguagem como redenção e também banalização e contradições na figura do vilão.

Young Ones (Idem, EUA, 2014) de Jake Paltrow

Jake Paltrow retorna à direção em um filme justificado pelo futuro apocalíptico e que estranhamente pousa no terreno dos westerns de Howard Hawks - por gênero e pela relação e construção de personagens. Enquanto Paltrow se concentra nesta brincadeira, o filme parece muito interessante. Logo o filme toma o caminho mais previsível, entre a sustentação do drama e os conflitos que os sinais do apocalipse implicam.

Boyhood (Richard Linklater, 2014)

 

Ao acompanhar um dia dos desajustados sociais texanos em 1991, Richard Linklater ajudou a cimentar um meandro comportamental que batizou seu filme e que depois foi associado apenas ao movimento de boicote ao trabalho – Slacker. O filme, que se apoiava no fluxo do tempo e na forma que os personagens enfrentavam o andar do dia foi nomeado ao grande prêmio do Festival de Sundance no mesmo ano. Em 1996, Suburbia era lançado. O filme acompanha através de um curto espaço de tempo e um pequeno espaço cênico – um posto de gasolina e seus arredores - o peso que a vida adulta traria para este grupo de “slackers” que lentamente assemelham a ideia que tudo está prestes a mudar.

Estes dois exemplos mostram como Boyhood parte de um princípio utilizado com certa frequência na filmografia de Richard Linklater: o tempo como sustentação. O filme que acompanha Mason da infância ao momento em que entra para a faculdade se resume a um jogo de elipses muito coeso, pois o maior desafio é de manter a ideia de fluxo – o passar dos anos - entre tantos cortes. A sensação que se dá é que Linklater resume o filme como antítese ao cinema de James Benning (curiosamente presença constante na sala de edição de Boyhood). É um filme de retrospecto, onde são pincelados momentos de aflição, afirmação e claro, de amadurecimento.

Boyhood, assim como Suburbia ou Slacker, não se inclina a qualquer tipo de drama. Os conflitos são presentes, mas o fluxo continuará como norte principal da narrativa. Como abrir um álbum de fotografias, lembrar-se de uma determinada época por alguns minutos e seguir em frente. Logo estaremos em outro local, com outras motivações, outros amigos e outra noção de vida. 

O que há de mais interessante em Boyhood é como Linklater nos dá o papel de nostálgicos e deixa seu protagonista como vivente. Mason passa pela vida sem olhar pra trás, como se estivesse sempre em busca do melhor. O espectador, passivo, ficará com os rastros, com a sensação de que o melhor está acontecendo e escapando das mãos a cada quadro, pois não há espaço para proveito. Esta maneira de esculpir uma parte da vida sugere este olhar para trás.

E por esta percepção, Boyhood vai lentamente de encontro ao que era seu oposto. A noção de explorar o momento e o tempo oferecido, suas formas e possibilidades. Se Boyhood é um resumo de fragmentos repletos de sentimentos e diferentes formas de compreensão da vida ao longo de doze anos de filmagem, ele exprime sua concepção de forma que é possível interagir com o básico, sem que nenhuma imersão domine o filme. E assim fica ainda mais interessante pensar na presença de Benning na sala de edição e como o diretor norte-americano - com quem Linklater protagonizou o belíssimo documentário Double Play dirigido por Gabe Klinger - faria Boyhood: provavelmente em um único plano que entoasse a infância e a juventude.

Boyhood (Idem, EUA, 2014) de Richard Linklater

Melhores Filmes de 2023

Mangosteen de Tulapop Saenjaroen Mais um longo post com os melhores filmes do ano. São os melhores filmes lançados entre 2021-23 com mais ...