Atirem no Pianista (François Truffaut, 1960)



Texto originalmente publicado no catálogo da mostra "François Truffaut em 35mm - Uma semana de cinefilia". 

A marca da maldade
Por Pedro Tavares

Atirem no Pianista abre com uma perseguição fantasma no qual um homem se choca com um poste e é salvo por um transeunte. O encerramento abrupto da noção de uma narrativa que se construiria se choca com um novo córrego, transferido para este homem que ajuda o fujão a se levantar. Um rápido papo entre eles sobre vida matrimonial até o virar da esquina. Aqui está o cerne do filme de Truffaut. A fuga e a questão moral.

A cena que abre o filme facilmente remete ao longa que batiza este texto, dirigido por Orson Welles dois anos antes de Atirem no Pianista. O diretor francês curiosamente armava aqui uma dicotomia entre diferentes formalismos. Atirem no Pianista, que é baseado na obra homônima do autor noir David Goodis, na mesma medida em que impulsiona o diálogo com o que viria a ser chamado de grande referência da nouvelle vague com Jules e Jim em 1962, usa a matéria-prima do film noir, na construção da dúbia relação mocinho-vilão e principalmente pela latente questão moral que permeia cada cena. Nela, o princípio da dúvida toma proporções crescentes, aqui numa economia atroz de elementos do gênero – das sombras às armas – como se Truffaut estivesse realmente interessado na transposição da aura de um sentido que lhe é comum ao noir como gênero literário e cinematográfico. 

As regras do jogo não são totalmente violadas quando estamos diante de alicerces muito importantes para o film noir como o desejo, a traição e a chantagem. Enquanto este córrego é extremamente funcional, é importante lembrar que Truffaut tinha um filme “de montagem” a ser feito e usa este artefato como contraprova tenaz a seus personagens como um simples comentário irônico ou como um corte que não simboliza apenas o “passar do tempo” e sim a solução de um caso policial. 

François Truffaut estava na equipe da revista Cahiers du Cinéma quando a chamada “política dos autores” foi debatida e defendida por nomes como Jean-Luc Godard, Jacques Rivette e Eric Rohmer, indo contra a opinião de um dos fundadores da revista, o crítico e editor-chefe André Bazin. Nesta leva de defesa de diretores como Howard Hawks, John Ford e Alfred Hitchcock, um filme como Atirem no Pianista serve como um encaixe-argumento muito curioso por parte de Truffaut. Afinal, aqui temos um filme de “gênero” que tanto se questionava e feito nos moldes do “real”, do possível para estes realizadores ainda na ressaca do pós-guerra. Esta duplicidade de formas e como o filme justifica uma terceira imagem a partir de um debate que perdura até os dias de hoje sobre o autor no cinema, coloca Atirem no Pianista como um filme ímpar na carreira de Truffaut, ainda que esteja sempre sobre certa sombra de outros grandes filmes como Os Incompreendidos e Domicílio Conjugal.

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