No Limite do Amanhã (Doug Liman, 2014)




Imortal é a nossa mania de definir limites e dar nome a eles. Colocar a liberdade artística em volta de um cercado, exigir associações para que possamos batizá-la. Se precisamos, portanto, de nomes, o "gênero", dentro do cinema, pode criar fronteiras, exigir fórmulas e, atualmente, acarretar em ótimas jogadas de marketing.
 
É certo que Doug Liman, diretor de filmes fortemente apoiados em aspectos visuais como Go!, A Identidade Bourne e Jumper norteou o prólogo de No Limite do Amanhã em fina ironia, o que poderia ser como um tiro no pé. Mas não é. Ele trata de como o cinema pode trazer inépcia através de seus eixos principais como o corte e a dimensão do tempo. É o terreno ideal para o raciocínio que se molda até a metade e se desenvolve ao fim do filme com certa velocidade, justificados por estes "limites".


É um filme que aborda as possibilidades de um novo dia em sua superfície, porém como exercício, No Limite do Amanhã é somente sobre as formalidades do cinema. Por se tratar de um filme de ciclos, Liman exibe os efeitos do espaço e da elasticidade do tempo que o cinema pode oferecer – em especial nos filmes de ação. No Limite do Amanhã é regido por pilares comuns de um tipo de cinema que passou por mutações e hoje desemboca na ficção. É o cinema do grande herói americano e que a serviço do roteiro clássico exige a presença de uma companheira e um vilão, por mais tortos que eles possam parecer. No caso, o filme de Doug Liman adormece a posição do vilão em pessoa e coloca a maior das vilãs, a morte, como alvo.


Não à toa vemos companheiros de tropa de Cage (Tom Cruise) chamados Griff(ith) e Ford. São meros detalhes como estes que amplificam o formato usado por Doug Liman, afinal D.W. Griffith e John Ford são dois dos mais conhecidos diretores que consolidaram este tipo de raciocínio. Pontos como este, o ataque a França e Rússia pelo exército americano e a certeza em manter o filme no cerne de gêneros que dividem da mesma motivação (novamente, ação e ficção), dão, enfim, limites ao filme, que é baseado na obra All You Need is Kill de Hiroshi Sakurazaka.


Estes limites servem de condução à essência destes gêneros como efeito ao grande público – entreter, iludir e faturar - e ao gene de sua construção, ou seja, a manipulação máxima de todas as possibilidades de gêneros tão livres por essência. Este é o terreno por onde No Limite do Amanhã se desenvolve, sem omitir suas intenções e justamente por isso tem êxito em seu propósito.

No Limite do Amanhã (Edge of Tomorrow,  EUA/Austrália, 2014) de Doug Liman

Sob a Pele (Jonathan Glazer, 2013)



O maior ponto a salientar em Sob a Pele é o fato do filme dirigido por Jonathan Glazer retomar a discussão sobre o discurso interior e sua forma, abordada por Sergei Eisenstein em A Forma do Filme: novos problemas. Pois o longa nada mais faz que explorar as leis de forma e composição através da fantasia e do pensamento sensorial. 


Portanto, o que vemos não é de fato a formação de uma trama aos moldes clássicos, mas apenas os traços necessários para liga-los à narrativa com a função de construir conflitos. Este é o ponto que tem criado comparações à filmografia de Stanley Kubrick, em especial 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968) e De Olhos Bem Fechados (1999). Nestes traços estão os diálogos superficiais e as sequências representativas, onde a morte é o eixo maior. A maior das certezas neste caso está a serviço do alerta. Ela acompanha as opções particulares do diretor no uso de um mundo frio, abandonado e extremamente carente. Destes elos saem justificativas para o estudo da personagem, interpretada por Scarlett Johansson.


Ela serve de parabólica deste mundo – distante, cruel e calculista. Porém, o diretor Jonathan Glazer não resume seu filme ao simples exercício de associação – que daria bom resultado, enfim – e desenha, sem driblar a previsibilidade, a transformação. É a transformação da mulher e sua idiossincrasia, por mais que a associação mais clara seja a de uma extraterrestre. Esta bifurcação falha, que leva ao mesmo caminho, traduz o efeito da ficção. Pois a saga de uma mulher destinada em ser e encontrar a morte aos poucos é levada para um lugar restrito, onde Glazer diminui o impacto de um filme feito para sua aura futurística e o contorna com a condenação de nossos atos, tão apressados e inconsequentes, curiosamente citados em um mundo onde sobra espaço e tempo para contemplar. 

Sob a Pele (Under the Skin, Reino Unido, 2013) de Jonathan Glazer

FANTASPOA 2014

Rápidos comentários sobre filmes vistos no Fantaspoa 2014:

 O Dia Trouxe a Escuridão (El Día Trajo la Oscuridad, Argentina, 2013) de Martín de Salvo

Filme suspendido, desenvolvido através de artifícios e representações. A decisão de fugir do sensacionalismo que o tema traz há muitos anos, usando o vampirismo como justificativa para a tentativa de entronizar personagens é acertada. Tudo aqui é dormente. E de propósito. Usar a iminência de um ataque e ambiência como sinalizadores de um filme de horror é suficiente.

O Samurai (Der Samurai, Alemanha, 2014) de Till Kleinert

O que domina o filme de Till Kleinert é como o flerte com o cinema fantástico amplifica uma espécie de "glória" que a narrativa carrega enquanto curiosamente utiliza a trivialidade da caça de gato e rato entre um  policial e uma representação de vilão das mais criativas dos últimos anos. Dinâmico como um thriller mais interessado em resultados, a força do filme está na subjetividade que o ambiente traz - tédio, passividade e, claro, crimes.  

O Beijo dos Amaldiçoados (Kiss of the Damned, EUA, 2012) de Xan Cassavetes

Tudo em O Beijo dos Amaldiçoados parte do convencionalismo e do controle. Talvez para não ultrapassar barreiras que os vampiros ganharam nos últimos anos e ficar entre o pastiche e um filme extremamente violento. O trabalho de Xan Cassavetes se resume em equilibrar pilares do tema às novas representações visuais e a descentralização da ação a partir de um triângulo amoroso e as necessidades vampirescas. 

Gerontofilia (Gerontophilia, EUA, 2013) de Bruce LaBruce

Bruce LaBruce aponta interesse às narrativas nesta versão gay de Ensina-me a Viver. Com o tradicional cinismo e fetiche estético, o grande trunfo do filme está mesmo no desprendimento do diretor às formas direcionadas como manifesto relacionado aos direitos LGBT. Além de ampliar o alcance da mensagem, Gerontofilia é LaBruce saindo do lugar comum, sem fios narrativos para justificar o diálogo com o erotismo.


Camaleão (Buqälämun, Azerbaijão/França/Rússia, 2013) de Elvin Adigozel e Ru Hasanov
Em análise superficial pós-sessão a questão da necessidade de Camaleão integrar a seleção de filmes de um festival como o Fantaspoa veio à mente. Principalmente por se tratar de um filme que opta pela distância dos personagens, sem eixos e de um silêncio esmagador. Porém, é interessante ligar o filme de Elvin Adigozel e Ru Hasanov ao formato do cinema fantástico. Camaleão é um estudo intrínseco acerca da sobrevivência e da ética sob olhar misantropo - logicamente seguida da ironia que esta ótica traz.  

O Deserto (El Desierto, Argentina, 2013) de Christoph Behl

O fato de Christoph Behl estruturar seu filme conforme a iminência de um ataque de zumbis faz de O Deserto um filme de intromissões. Se o muro separa os personagens do "mundo fantasioso", Behl usufrui deste norte e constrói a tensão dentro da casa e lá exibe as diversas formas de intervenção do real e principalmente de linguagem sem perder a meada de um filme de suspense. 

The Dirties (Idem, Canadá, 2013) de Matthew Johnson

Kevin Smith escreveu no ano passado sobre a importância de The Dirties pela facilidade de justificá-lo como narrativa e torná-lo em produto. Ainda que o filme seja um objeto pra lá de estranho que aborda a cultura pop e o mercado cinematográfico - e seus respectivos legados negativos -, Johnson entrelaça sem pudor a comédia de humor negro estudantil à história de jovens vítimas de bullying que desejam produzir um filme.

Mulher Coelho (Mujer Conejo, Espanha/Argentina/Venezuela, 2013) de Verónica Chen

Por se revelar um filme-denúncia no primeiro ato - o que é de extrema coragem e ambição por unir tal postura à trama fantasiosa -, a estrutura de Mulher Coelho transparece certa inocência por parte de Verónica Chen em ligar suas partes através do ponto de vista de imigrantes sobre a corrupção em um país estrangeiro.

Jug Face (Idem,  EUA, 2013) de Chad Crawford Kinkle

Provavelmente o filme mais convencional da programação do Fantaspoa, Jug Face se configura como uma simples metáfora acerca da opressão religiosa e o fim da compaixão. Serve de contraponto à ótica moderna do gênero e um resgate às tramas oitentistas.


A Estranha Cor das Lágrimas do Seu Corpo (L'étrange couleur des larmes de ton corps, Bélgica/França/Luxemburgo) de Hélène Cattet e Bruno Forzani

A imagem em seu embrião e função básica - a de encadear códigos; A Estranha Cor das Lágrimas do Seu Corpo possui sequências que dobram, desdobram, manipulam resultados e a orientação do espectador que nutre a experiência de um jogo sensorial justificado pelo terror. Experiência válida, ainda que Hélène Cattet e Bruno Forzani não saiam do ponto onde seu filme anterior, Amargo, parou.


Raze (Idem, EUA, 2013) de Josh C. Waller

Um dos  mais divertidos e legítimos discursos acerca de assuntos tão sérios como a opressão  e a margem para discutir a violência doméstica, machismo e a representação da instituição familiar na sociedade. Waller parte de um cinema tão desgastado como prático para circular estes assuntos com humor e coreografia invejável. 

 Ruína (Ruin, Austrália/Camboja, 2013) de Michael Cody e Amiel Courtin-Wilson
 
Prêmio do júri no Festival de Veneza, o filme de Michael Cody e Amiel Courtin-Wilson exibe um exorcismo desenvolvido na base um drama muito consciente de seus eixos. Trata-se de um filme que não faz questão de exibir problemas e sim consequências, como um sintoma universal que pede uma discussão aprofundada. Logicamente estamos falando de corrupção e violência em um filme apropriado por corpos.

Algumas Garotas (Algunas Chicas, Argentina, 2013) de Santiago Palavecino

Convenções do cinema de gênero a serviço do tempo. A morte simbólica - ou o constante flerte com a literalidade - dialogam de forma ingênua com o abismo criado pelo fim da juventude e a vida adulta. E neste espaço as personagens usam a inconsequência como fuga e a dor, enfim, como terror.


Return to Nuke'Em High - Parte 1 (Idem, EUA, 2013) de Lloyd Kaufman
Contra o tédio das comédias contemporâneas, Lloyd Kaufman usa os tradicionalismos de "Tromaville" para criticar as rédeas usadas nos filmes de hoje e a anemia social americana neste retorno ao centro "educacional" de Kaufman. A base parece ser coesa no primeiro ato, mas não sustenta a gratuidade que vem a seguir.

 A Terra das Cartas (Tasher Desh, Índia, 2012) de Qaushiq Mukherjee

Entre as super produções de Bollywood e o cinema indiano de baixíssimo orçamento, Qaushiq Mukherjee produz um híbrido de lisergia e ode ao intervalo entre ações na teatralidade. É possível notar fortes influências do cinema independente americano dos anos 90 quando livre da narrativa, e em especial a tendência de transformar o filme em objeto de decifração, o que esvazia e muito a proposta inicial de A Terra das Cartas.

Promoção: Getúlio

Para quem acompanha o cinemaorama nas redes sociais, o sorteio de ingressos de Getúlio, filme dirigido por João Jardim está no ar. É só procurar os posts relacionados ao assunto e seguir as regras para participar.


Hotel Mekong (Apichatpong Weerasethakul, 2012)




Hotel Mekong é um filme particular e extremamente passional. Seu cunho contemplativo e diálogos supostamente soltos são construídos a partir de códigos facilmente captados para os familiarizados com o cinema de Apichatpong Weerasethakul, que exibe controle sobre a proposta de um filme que está muito mais para uma carta de amor que narrativa. 

Nos primeiros minutos de filme, vemos um personagem colocar uma camiseta escrita “Joe”. É o caminho a seguir. Não é por menos, afinal este é o nome por qual o diretor tailandês é conhecido no ocidente. A partir daí, Hotel Mekongse torna uma espécie de poema particular  dividido com o seu público cativo. A vida após a morte, espiritualidade e sexualidade, temas recorrentes nos filmes de Apichatpong ganham atenção, construídos por fatos sobrenaturais vividos no hotel que batiza o filme.

De frente para o rio Mekong, o olhar se torna objeto principal de discurso, onde a postura do diretor é tão harmoniosa ao acaso quanto à postura firme de quem sabe o que escolheu para viver. E neste caso, viver não é fugir do tempo e dos dias, como num jogo de gato e rato ou uma corrida de jet skis, Mekong, o hotel ou o rio, continuarão lá. E o espírito também. Alimente-o, sacie-o, viva-o.

Hotel Mekong (Mekong Hotel, Tailândia/Reino Unido, 2012) de Apichatpong Weerasethakul

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