Há um tempo atrás comentava aqui
sobre a importância da decupagem em Whiplash, filme que proporcionou a Chazelle
o mundo que ostenta em La La Land, espécie de desfecho de uma trilogia sobre o
jazz e leve moral sobre sonhos e a imperfeição da vida. Pois bem, é possível
que esta estrutura seja um espelho de Whiplash e principalmente Guy and
Madeline on a Park Bench, primeiro filme do diretor. E talvez isso seja o mais
interessante do filme, como La La Land é uma releitura idílica de um mundo outrora
registrado. Também fica claro que Chazelle se impressiona com a própria
estrutura que hoje carrega nas costas e sabe brincar com isso - em tom que o
permita encantar o grande público e seja o filme da temporada de premiações. É
o caso de um filme de espinha dorsal enganosa mas que nos detalhes sabe colocar
suas (auto)referências e neste caso, usar os números musicais como engrenagens
à narrativa ante ao mero espetáculo. Ainda que tudo pareça meticuloso, La La
Land é um filme raso sobre conflitos da idade adulta e que estorvo seria se nos
jogássemos na cama diariamente para sonhar e não para realizar.
Manchester À Beira Mar (Kenneth Lonergan, 2016)
Nos
meus filmes, eu me esforço, frequentemente, para ilustrar da maneira mais
simples, mais evidente, o tempo percebido, de forma diferente, segundo os meus
personagens. O cinema permite isso. O diretor dispõe do poder de revelar a
relatividade das situações. Podemos nos concentrar em um detalhe, filmar sob
diferentes ângulos e durante mais um tempo um ator do que o outro, apesar de
ambos estarem conversando. Mostrar que uma situação filmada é subjetiva me
agrada.
(Takeshi
Kitano)
Manchester À Beira-Mar é um filme que luta constantemente
em manter o fantasma do luto sobre a trama. Sua narrativa parte do sentido de reinício
após um trauma com renitências ao passado (ou flashbacks, como preferir) e o
maior alicerce que Kenneth Lonergan (diretor de Conte Comigo (2000) e do ótimo Margaret
(2011)) achou para a funcionalidade delas foi o melodrama. Um tipo de melodrama
adormecido, sim, mas de cenas elásticas como forma de aludir ao passado quando
este não está na tela. São cenas de rostos e corpos cortados pela metade, em
geral, como uma espécie de asfixia e amputação de uma história - que aos poucos
exibe suas bifurcações. Lonergan exime alegorias para criar um suposto arco de
culpa - o filme é autoexplicativo à função do acaso como modo informativo de um
estado de espírito - talvez a única delas seja a locação: um local ermo, cinza, silencioso.
É uma forma comum
de potencializar a construção de personagens e dar a eles diferentes nortes.
Lee Chandler (Casey Affleck) é a personificação do efeito que o luto traz. O
mínimo o basta para se reinventar. Em outro extremo Lonergan reserva o
cotidiano de Lee como força contrária. A figura do sobrinho, os dias que
passam, as oportunidades que passam pelos olhos; tudo guarda segredos que o
filme não se inibe em anunciar desde o primeiro terço. Chandler raramente é
visto de pé e de corpo completo. Está agachado, sentado, deitado ou é
registrado em superclose. Será
incompleto para sempre. Há nesse ponto uma questão muito interessante sobre
Chandler ser vampirizado no filme: como a amargura pode chegar nesta forma?
Conforme estas
lacunas são preenchidas pela narrativa, a figura de Chandler passa por uma
metamorfose no julgamento que Lonergan sugere ao público. São nos planos mais
abertos, de ações bruscas e de corpos mais distantes que o filme se
potencializa - as brincadeiras no barco, o jogo de hóquei, a bebedeira e os
ensaios com a banda: a memória aqui é volátil, como se este fantasma tomasse
diferentes formas conforme à aparição de cada rosto na tela. Se o jovem Patrick
(Lucas Hedges) e a forte Randi Chandler (Michelle Williams) servem de
personificação da continuidade, é necessário lembrar que até ela terá momentos
de aflição e arrependimento.
Portanto, Manchester À Beira-Mar é um filme
subjetivo à respeito de que toda emoção tem raízes e que haverá um momento para
que as folhas caiam. E é deste processo sem ordem definida que o filme se
afirma e que a vida nunca seguirá uma lógica, por mais que se tente planejá-la.
São dos limites do gênero que o filme se sustenta, em cenas mais explosivas -
há uma série delas, como se o filme fosse uma longa série de vinhetas do
silêncio que precede o estrondo.
Se o
melodrama é um gênero de exatidão e não de subjetividade, Lonergan consegue o
balanço necessário para que o filme seja, antes de tudo, o fim do abismo e ode
à observação.
*texto originalmente publicado no Cineplayers.
Assinar:
Postagens (Atom)
TRÊS AMIGAS (Emmanuel Mouret, 2024)
Parece uma extensão de Chronique d'une liaison passagère e Love Affair(s) com olhar menos formalista de uma teia de amores e tragédi...
-
O passado como conduíte da inevitável abordagem alegórica sobre sua resolução. Enquanto houver seus resquícios seguir adiante será uma a...
-
Mangosteen de Tulapop Saenjaroen Mais um longo post com os melhores filmes do ano. São os melhores filmes lançados entre 2021-23 com mais ...