Em entrevista a Grazia Paganelli, então
programadora do Museu de Cinema de Turim publicada em Sinais de Vida: Werner
Herzog e o Cinema (Indie Lisboa 70, 2008), Werner Herzog comenta sobre a
principal percepção de Fata Morgana (1971): "Para recordar". Tal
afirmação partiu de uma sugestão de Grazia sobre o filme: o que os olhos vêem e
o que imaginam são dois caminhos diferentes. Em casos de registro de um estado
de espírito, seja ele de um local, grupo ou apenas um personagem, pouco
influenciaria a cronologia ou a quantidade de arcos narrativos ou subterfúgios
dados ao padrão de simbolismos quando se trata de uma experiência metafísica.
Rua Secreta é um caso de estrutura que se toma consciência à medida que este
espírito é revelado. Este espectro é apresentado de forma que a política é
parte indivisível das coisas e que a corrupção estará na direção do olhar (a
cidade como nossa extensão), mesmo que o objetivo de uma vida seja fugir desta
entidade.
Desta forma é feita a transposição das ruas da
China para um microorganismo - uma torta espécie de gangue - cujo valorização do que se vê está atrelado
ao diálogo direto com gêneros cinematográficos. Rua Secreta é, em síntese,
feito de associações, justificado pela transformação de um roteiro linear em
híbrido hermenêutico ao habitual escape da própria vida quando a colocamos em
risco, diariamente, sem percebermos. Para isso, o filme de Vivian Qu, adormece
esta percepção com outro diálogo ligado à essência e que transpassa a rotina
com desejos de intensidades diversas. Um paradoxo ligado às mutações cabíveis
muito mais ao roteiro que às emoções do dia-a-dia, e por isso, Rua Secreta é um
filme que sobrevive na superfície.
Há a simetria para que Rua Secreta seja um
filme de gangsteres, um romance inflado e ainda que contido, um discurso
social. Um jogo comum e batido sobre o que se vê e o que se entende, como
afirmara Grazia Paganelli, quando boa parte do que é visto aqui é colocado às
avessas a cada "mudança de gênero". Inevitável é à associação ao
discurso social em função de um tipo de panorama apressado mas suficiente para
a noção de quem e como governa o país. Tudo passará por um "crivo",
este que sempre terá o poder e o dinheiro como balança. Um serviço a queda de
mitos aos quais nossos olhos estão acostumados a ver a cada esquina. Este
olhar, objetivo, afirma que pouco importa o local; trata-se de um diagnóstico
geral e extremamente pessimista.
E demorará para a tênue linha de equilíbrio
narrativo ser transformada em decoração. O que em algum momento foi narrativa é
logo transmutado para uma espécie de montes complementares, ou, como é dito e
cabível a este, uma teia, um quebra-cabeça, quando todos seus elementos são
exibidos. O fim do mistério do tal espírito, por fim, leva ao que mais
importante Rua Secreta guarda: o diálogo com que há na tradição do cinema
chinês contemporâneo (Jia Zhang-Ke, Wong Kar-Wai e Hou Hsiao-Hsien, em
especial). É o fim da zona de conforto e da mudança em função da mobilidade que
interessou a Vivian Qu.
O filme, por fim, está debruçado em um tipo de
controle da História, de um sintoma geral (o desespero) aplicado às convenções,
dadas as proporções, aos cineastas citados. Se vive na inospitalidade de Em
Busca da Vida, se deseja como 2046 e sonha como Café Lumière. Porém, não há
espaço para discutir a memória em Rua Secreta. Há, no máximo, o instinto de
sobrevivência, quando, enfim, o que está diante de nossos olhos, diariamente, é
transformada em ameaça - nem constatação ou imaginação. O passado, está
incrustado nas interferências e desconfortos de uma cidade (nunca identificada)
que reverbera todas as ruas do mundo, que necessitam de uma reação - antes
mesmo de enxergarmos ou respirarmos estas ruas.
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