No início dos anos 2000, quando Domingos Oliveira descobriu o
cinema digital, pôde enfim voltar à produção ferrenha de filmes. E, depois
disso, cada novo filme parece ser o último. Uma celebração, lamentação,
despedida ou reclamação geral. Cada um com suas particularidades. A fixação com
a morte, assim como Woody Allen, grande inspiração de Domingos, está em cada
fresta de seus filmes desde então e amplificada na deliciosa autobiografia
Minha Vida, lançada em 2014.
Em BR 716, Domingos foge do método usado nos filmes de
cinema digital, com obras inclinadas à comédia dentro de sua verborragia,
tendenciosas em relação às conclusões e uma moral acerca da vida. Seu novo
filme é verborrágico, claro, mas preocupado com a construção de uma atmosfera.
Era o tempo da boemia de Domingos, que não permite que BR 716 seja explícito em
afirmar que se trate de um filme sobre si. Caio Blat, que vive Felipe,
protagonista, é Domingos até o último fio de cabelo, mas vive conflitos mais
tortuosos que Domingos nos tempos de roteirização de A Culpa (1971).
Esses conflitos se refletem em um filme claustrofóbico com ajuda
das paredes do apartamento da Barata Ribeiro 716, com um interesse muito maior
em se fazer cinema e não um teatro informal como seus últimos filmes foram (com
exceção de Infância). Trata-se de um filme de entregas em um ambiente muito
próximo aos baluartes da Nouvelle Vague - ainda que seja um filme de estúdio -,
das relações interpessoais ou com o que há em volta, do golpe às contas no
botequim. BR 716 guarda nostalgia em cada quadro e a constatação de que tudo
pode se encaixar, mesmo que o drama sinalize o fim, ironicamente quando Felipe
ainda estava no início. É, portanto, uma celebração à juventude, que Domingos
tanto revisita.
Um filme de mulheres, álcool, arte, festas e política como a
espinha dorsal do longa, combinação que o cinema francês imortalizou tantas
vezes. Esse é o diferencial de BR 716, pois o tributo sobrepõe à palavra neste
caso. É de uma beleza estonteante ainda que o que é dito também esteja sempre
parelho ao que se vê. Mais um filme de despedida, mas dessa vez não do homem ao
mundo e sim do homem ao tempo. É um filme de saudades mesmo para quem não faça
ideia do que foi vivido.
Texto originalmente publicado no
Cineplayers.