No livro A Short History of Cahiers du Cinéma, a crítica,
autora e roteirista Emilie Bickerton lembra da rejeição a cineastas que
utilizavam gêneros como base para justificar suas histórias. A equipe de
críticos e cineastas da revista, na época formada por nomes como
Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette e Eric Rohmer
justificava o trabalho de diretores como Howard Hawks, John Ford,
Nicholas Ray e Alfred Hitchcock pelo manifesto da “Política dos
Autores”. Rohmer, por exemplo, elevava Hitchcock a mestre moderno no
início dos anos 50 através do texto Of Three Films and a Certain school
e defendia o valor de obras de acordo com o tempo em que era analisado.
Já Godard e Rivette teorizavam sobre obras de Nicholas Ray e Howard
Hawks, respectivamente. Até o fim dos anos 60 esse discurso foi mantido,
quando Godard, integrante da escola de Vertov, colocou a palavra ante à
imagem e declarando no fim de Weekend (1967) “o fim do cinema” e da
autoria.
- “Eu era um cineasta burguês, depois um cineasta progressista, e depois não mais um cineasta, mas um trabalhador de cinema (…) e quando falamos de Hollywood, entendemos Hollywood como todo mundo: seja o Newsreel, ou os cubanos, ou os iogoslavos, ou o Festival de Cannes, ou o de Nova Iorque, ou a Cinemateca Francesa ou a Cahiers du Cinéma. Hollywood quer dizer tudo relacionado com o cinema. Assim, cada vez que a gente diz Hollywood está dizendo o imperialismo deste produto ideológico que é o cinema” (Focus on Godard, CARROL, 1970)
O embrião da “Política dos autores” colocou os jovens críticos da Cahiers
contra o conservadorismo da velha guarda e questionou a função da
crítica. A “Política dos autores” funciona à distinção de cineasta e
autor pela grife. O crítico e teórico André Bazin em 1957 esclareceu as
dicotomias desta ideia e suas fragilidades através deste texto na edição
de número 70 da Cahiers, comparando a recepção da crítica a um filme
ruim de “autor” a um borrão de tinta feito por um pintor famoso. Essa
ideia também foi invocada por Alexandre Astuc sobre camera-stylo na
década de 40.
Já nos anos 00, o cinema ganhou uma nova maneira de produzir e
distribuir filmes. A tecnologia facilitou a feitura e permitiu que
filmes fossem vistos de variadas formas e assim refletindo o pensamento
da função da crítica. Nos tempos de torrents e serviços de streaming, a
variação desta “política de autores” foi criada via internet, onde o
cinema sobrevive com mais força, longe das salas de exibição pública e
das remanescentes locadoras de vídeo. Os novos autores, que segundo
Bazin eram amados pela excelência e vitalidade e não pela abordagem,
hoje são chamado de “vulgares” pelo diálogo com o irreal e carregam a
mesma empolgação por parte da cinefilia – hoje sufocada por infinitos
arquivos de torrent e mais agregador no sentido de definição sobre o que
é ou não um “autor vulgar”.
Sinais dos tempos
Segundo artigos de revistas online de cinema, o ponto de partida para
o termo “Vulgar Auteurism” foi a matéria de Andrew Tracy para a Cinema
Scope sobre o cinema de Michael Mann à época do lançamento de Inimigos
Públicos (2009). Porém Tracy já ensaiava sobre o termo na crítica de
Déja Vu (2007) de Tony Scott. Adiante muitos artigos foram produzidos
discutindo os valores estéticos e filosóficos de diretores que trabalham
em “modo popular”, esta que seria a suposta base para o termpo Vulgar
Auteurism. São diretores com preocupações distintas em relação à imagem,
principalmente por seu espaço e função, mas em comum, todos têm
momentos estéticos fascinantes em suas filmografias. A partir disso o
que se viu nas redes sociais foi um desfile de stills que inerentes à
qualidade dos filmes, os definiam. Um caso clássico desta ação é a
comparação matemática de frames de Mortal Kombat (1995) de Paul W.S
Anderson com Falstaff – O Toque da Meia Noite (1965) de Orson Welles
divulgado no Tumblr “Vulgar Auteurism”.
Desta relação com a imagem se questiona forma e influências destes
“autores vulgares” que esbarram nas artes plásticas, jogos de videogame,
HQs e claro, grandes diretores de cinema.
O caso do diretor Paul W.S Anderson é um bom exemplo: cultuado por boa parte dos cinéfilos que se debruçam sob a crítica em redes sociais como o Letterboxd e MUBI, seus últimos filmes como Pompeia e Resident Evil: Retribuição foram ovacionados como baluartes do “gênero”. Este último com linguagem frenética, preocupada com a proximidade ao jogo de videogame. Pela produção criativa sobre o real, há espaço para observação que o Vulgar Auterism faz contraponto à autoria de um cinema feito nas ruas, em principal à Nouvelle Vague, Neorrealismo Italiano, o No Wave americano e ao Cinema Novo – já que falamos de movimentos cinematográficos; do uso da fantasia ante o real e de certa poesia não dogmática entre enredos que prestigiam os corpos. Pois já que falamos em Cinema Novo, digamos que o Vulgar Auteurism em muitos casos exige uma relação hiperconstrutivista sobre o corpo-espaço, da mesma maneira que Joaquim Pedro de Andrade faz em Os Inconfidentes (1972) e Glauber Rocha em Terra em Transe (1967) no qual o grande mestre desta função dos autores vulgares é Johnnie To.
São desses corpos que vemos um trabalho de coreografia coeso em cenas de ação – vale citar a cena da boate de De Volta ao Jogo (Chad Stahelski, 2014), o balé de Soldado Universal 4 (John Hyams), as famosas sequências de tiroteio presentes em boa parte dos filmes de Johnnie To e as perseguições dos últimos filmes de Tony Scott. Essas cenas servem de suspiro à trama em boa parte dos casos e não servem como um show de alegorias. É importante lembrar que por não possuir bordas, o termo Vulgar Auteurism sempre carregará exceções. E se pensarmos que, aos meandros de definição, poucos movimentos cinematográficos foram batizados por quem fazia os filmes e sim por críticos e pesquisadores os definindo por margens e similaridades – data, abordagens, discurso… O Vulgar Auterism é sim, uma ótima ferramenta de marketing para cinefilia ainda que a questão para onde os olhos miram realmente cabe a cada quadro, inclusive deste Tumblr citado anteriormente.
O Vulgar Auteurism permite o retrospecto. Nomes como Paul Verhoeven,
Walter Hill e John Woo, para citar alguns, reprovados pelo crivo do
público e aclamados pela crítica nos anos 80 e 90, repetiram, em devidas
proporções, o caso de Hawks, Ford, Ray e Hitchcock para os críticos da
Cahiers du Cinèma. Hoje Verhoeven, Hill e Woo aparecem em dezenas de
listas que os definem como autores vulgares. Há a identificação direta
do termo com autores que trabalham com gêneros populares como o cinema
de ação, terror e suspense como Tony Scott, Jaume Collet-Serra, Johnnie
To, Neveldine/Taylor, M. Night Shyamalan e Kathryn Bigelow, porém, por
exemplo vemos os irmãos Farrelly e Abel Ferrara no mesmo balaio. Os
nomes de John Carpenter, Clint Eastwood, Samuel Fuller e Michael Cimino
também figuram em diversas listas que definem o que é o Vulgar Auterism.
A imagem e seus custos
Por ser abrangente em relação a tempo e características, o termo se
utiliza de alicerces que permitem discorrer sobre o contínuo expediente
de reflexão em obras classificadas como escapismo. São diversos tipos,
meios e leituras de cinema convergidos em um por quem o consome e que
prazerosamente reverte seus meandros de produção – dos altos cifrões ao
objetivo dos estúdios – em função de uma interpretação baseada na arte e
sua pluralidade formal em respeito ao diálogo. Mas se estamos em um
momento que a internet cria um caminho independente de distribuição, o
Vulgar Auteurism hospeda mais uma contradição.
O “modo popular” hoje encontra plataformas de streaming para saciar o
espectador, já que as salas de cinema hospedam em boa parte comédias e
filmes de heróis e enfrenta o interesse público pelas séries de grandes
estúdios. Portanto, não é tão popular assim. Com raras exceções, boa
parte dos autores aqui citados produzem com auxílio de produtoras de
pequeno e médio porte ou partem para produções independentes com ajuda
dos fãs – a exemplo de Rob Zombie e seu último filme, “31”. Ainda que se
afirme que o Vulgar Auteurism se resume a filmes de ação com suporte de
distribuição e divulgação, seu histórico o define como um termo que
viveu nas locadoras e hoje está no video on demand. Ainda sobre “31”, o
filme foi produzido graças a ajuda dos fãs via Kickstarter, foi exibido
em festivais e sem respiros parou nas plataformas digitais – e
consequentemente nos sites de torrent. Resumindo: não houve tempo para o
filme construir carreira.
Herói ou vilão?
A respeito da discussão que o Vulgar Auterism devolve à crítica sobre
a função da imagem e da própria crítica em tempos de dispositivos que
dominam o olhar e que o interesse pela leitura é vertiginosa, é
preferível ver com bons olhos o termo. A sensação é de ciclo, se
voltarmos à “Política dos Autores”. Ainda que se questione
constantemente o peso da grife sobre a palavra e que hoje tudo pode ser
resolvido com buscas via YouTube, estamos portanto a falar sobre a
vilania dos novos tempos. Ainda que suportada por alegorias com diversas
funções e códigos, trata-se sempre do ode à narrativa e dramaturgia. Se
há a possibilidade de uma provocação avant garde ao desinteresse e
passividade do consumidor, cabe a questão se os autores vulgares são um
bom caminho para o interesse do grande público. Principalmente por
considerar a imagem ante ao verbo na arte contemporânea, o irreal e
acessibilidade.
Texto originalmente publicado na Revista Multiplot!
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