Durante o processo de investigação e conclusão de um caso policial  que dura cerca de doze horas, Era Uma Vez na Anatolia faz diferencial  pela maneira que se conjuga. A partir da clara referência do chiaroscuro  de Leonardo Da Vinci em intenso jogo de luz e sombras, o diretor Nuri  Bilge Ceylan (Três Macacos) usa a península anatoliana como palco de uma  história crua, ironicamente comparada aos contos de fada. Daí o seu  título. 
Como principal suporte do filme, os diálogos transparecem  tabus sociais envolvendo policiais, promotores e suspeitos do crime.  Com eles, Nuri Bilge Ceylan aponta que o grupo de homens, ao relento e  imunes à tempestade que ameaça cair por boa parte do filme, nada mais é  que a representação de uma nação. Totalmente contrário ao modelo  centralizador na relação do cinema com a polícia através do imaginário  de justiça e corrupção. 
O processo que envolve a busca por um  corpo desaparecido, o trivial julgamento e a série de impropérios do  acaso disparados contra os trabalhadores – ao menos na visão deles, é  doloroso. O trabalho exige que os dias virem noites sem a percepção  exata do tempo. A claridade para Ceylan exerce a função de exibir ainda  mais as contradições de homens que dividem na mesma porção o lado  carrasco e humano. Um belo exemplo é a percepção dada às mulheres como  corpo estranho, estrangeiro, destinado ao azar. 
Portanto,  estamos diante de um panorama do homem comum, que tende à ironia e  crueldade em momentos delicados. E Ceylan não os inibe em seguir a ação  com intensos e distorcidos lamentos sobre a ambiguidade moral vivida  nesta profissão, que de alguma forma, os define. Raros são os  momentos que os suspeitos são execrados explicitamente, mas a tensão é  latente a cada quadro de Era Uma Vez na Anatolia. Os personagens são  homens igualmente bons e ruins, como qualquer outra pessoa. Talvez pela  noção que o estudo é muito mais profundo, Era Uma Vez na Anatolia serve  como introdução à complexa e minuciosa tese que o ceticismo imposto pela  burocracia supostamente encorajadora é o norte para a crise do homem  moderno. A rotina já é suficientemente burocrática. É necessário ser, de  fato, humano em algum momento do dia. Nem que seja em momentos  inapropriados. Pois, conforme o ditado popular, a justiça também é do  homem. 
★★★★
Era Uma Vez na Anatolia (Bir Zamanlar  Analo'da, 2011) de  Nuri Bilge Ceylan
*Texto originalmente publicado no Almanaque Virtual 

 
 
 
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