Últimas Conversas (Eduardo Coutinho, 2015)


Últimas Conversas abre com Eduardo Coutinho sentado à frente da a câmera, lugar de seus entrevistados, afirmando seu fracasso sobre o filme que será exibido. Diz que não sabe o que fazer com o material filmado e que não sabe lidar com a juventude. Em seguida, fala sobre a espinha dorsal de sua filmografia a partir da segunda parte da década de 90 – a mutação de personalidade de seus entrevistados diante da câmera. “Os jovens são piores”, segundo Coutinho, que segue com o desejo de entrevistar crianças, pois elas sim serão puras na hora de responder. Segundo o diretor, por falta de transparência, ele sempre entregou filmes diferentes do prometido aos financiadores.

Obviamente se trata de uma contradição clássica para quem conhece a filmografia do diretor. “Conte-me a tua história, pode mentir, sem problemas” e “Farei perguntas imbecis”. São duas das frases de Coutinho para uma personagem de Últimas Conversas, filme que nasce fadado à aura de despedida e de certo lamento, mas que é entregue com alegria surpreendente, numa das mais singelas contradições do diretor. As Canções, seu filme anterior, entregue à cantoria entre os “causos”, era amarrado pela melancolia e arrependimento. Últimas Conversas, talvez pela chance de renovo de vida destes jovens, mesmo com tantos casos tristes contados, é interpretado, interagido e devolvido por Coutinho com otimismo indecifrável.

Em rápido panorama, percebe-se que hoje a figura da mãe é o maior alicerce dos jovens e que os pais, quando presentes, são distantes. Há nos personagens o desejo de resposta à infância difícil, seja com o crescimento profissional, de mudança completa de vida ou de retribuição a quem os ajudou. Coutinho, como sempre, faz o papel de ouvidor, nunca de julgador. Afirma a uma personagem sobre o seu gosto musical: “Celular é uma coisa…né? Ih, apagou! Toma…”, antes mesmo de ver a lista de músicas sugerida por sua entrevistada. Valoriza, desta forma, as afirmações de sua entrevistada, por mais que não se interesse em nada por elas. É a forma que Coutinho sempre seguiu para interagir e continuar invisível.

Entre uma entrevista e outra, a clássica cadeira vazia serve de coadjuvante para a fumaça dos intermináveis maços de cigarro do diretor, que parece menos preocupado com o que está para acontecer. Quando o personagem entra na sala, tudo muda, ainda que desta vez a voz de Coutinho seja ouvida com frequência. Responde ao jovem que se incomoda com os silêncios tão característicos do diretor: “O silêncio é extraordinário. Se tua TV para de falar, você estranha e começa a pensar”. É a peça fundamental para o personagem que tanto divaga sobre vida e morte diante da câmera. Morte que transpassa pelo filme em diversas óticas, chegando à afirmação que resume a posição de Eduardo Coutinho sobre seus personagens (de Cabra Marcado Para Morrer a As Canções) através de Luiza, uma menina de 6 anos que realiza a vontade afirmada no início do filme.

O filme, montado por Jordana Berg e terminado com a supervisão de João Moreira Salles, respeita as convenções de Coutinho, mas o desenha de maneira que o diretor seja o protagonista de sua própria investigação. Sempre interessado em microcosmos como parabólica do macro, Últimas Conversas é um encontro que transparece o interesse de Coutinho em se (re)descobrir na mais ligeira de suas conversas, quando pergunta como Luiza nasceu, por exemplo: “Eu era uma bolinha e cresci”, responde a menina. O que se vê é a entrega de alguém sempre disposto a ouvir, agora em total interação com o que se diz. Se apaga, portanto, a invisibilidade. A dinâmica é subvertida. Não há espaço nem mesmo para o silêncio, para o pensamento ou atuação, o que se vê é a tão almejada pureza, por mais que Coutinho tente manchá-la com seu tradicional pessimismo uma vez ou outra: “Eu não sei o que dizer”, responde Luiza à chuva de perguntas que uma menina nunca entenderá. É um passo à frente do realizador que sempre respeitou as fronteiras e sempre esteve preocupado com a ética, até mesmo depois das filmagens. O lado espirituoso de Coutinho chega ao ápice de sua investigação, invadindo a tela vez ou outra.

E se há uma ideia de ciclo forçada pelas circunstâncias da morte de Coutinho, Luiza serve de contraponto e encaixe ao que começou em Cabra Marcado Para Morrer; Últimas Conversas também foi um projeto abortado e transformado em outro filme. O papo de Coutinho com a menina em nada compete com os assuntos religiosos de Santo Forte, os existenciais de Edifício Master e Jogo de Cena, os artísticos de Moscou ou os sociais de Babilônia 2000 e Boca de Lixo. Todos estes assuntos estão diluídos em cada personagem de Últimas Conversas. Neles, Coutinho é diretor. Com Luiza, Coutinho é apenas Coutinho.


Texto originalmente publicado no Multiplot!

Entrevista: Allan Ribeiro

A relação do diretor Allan Ribeiro e o artista plástico Darel Valença Lins representa a ruptura da rotina solitária de um homem que abre brechas suficientes para analisar sua persona entre seu trabalho em Mais do que Eu Possa me Reconhecer. O filme, que estreou na última Mostra de Cinema de Tiradentes e saiu com o prêmio do júri da crítica da Mostra Aurora, principal prêmio do evento, é o tema principal deste bate-papo com o diretor, que também fala de distribuição cinematográfica, dos filmes anteriores do cineasta e do tempo de filmagem na casa de Darel.

"Mais do que Eu Possa Me Reconhecer"

 Mais do que eu possa me reconhecer à priori me pareceu a ruptura de um estado de espírito alimentado por Darel, sempre protegido pela magnitude de sua casa. Como se tua presença e a de Douglas trouxesse uma nova interpretação à vida do artista, mas sem resistências. Para chegar a este ponto eu queria saber mais da pré-produção do filme, se houve algum planejamento para a temporada passada com o Darel, inclusive do ponto de vista ético já que Darel lida com situações extremamente delicadas.


Allan Ribeiro: Meu primeiro contato com Darel já foi através do viewfinder de uma filmadora, a mesma que seria usada no filme alguns meses depois. Estive em sua casa, no início de 2009, para registrar um depoimento que seria exibido na exposição “Goeldi”, produzida por um amigo. Assim que terminamos, Darel estava muito interessado no meu equipamento, disse que fazia vídeos e passava as noites sozinho assistindo a filmes.



A partir daí começamos uma amizade. Ele adora receber amigos e bater papo. Depois de alguns encontros, veio a vontade de filmá-lo, sem saber muito o que faria com este material. Agora, 6 anos depois acabou virando um longa-metragem. Não houve exatamente uma pré-produção. Eram apenas eu, Darel e nossas câmeras. E o Douglas durante um dia que me ajudou com o som direto. Sem nenhuma resistência de Darel, como você colocou.



A respeito da questão ética, você deve estar se referindo a duas questões: a solidão e a morte do filho. Estes assuntos são colocados com muita naturalidade pelo Darel e não foi um problema durante os 4 dias de filmagem e nem na montagem. Recentemente, eu mostrei o penúltimo corte do filme para ter certeza que ele não ficaria chateado com estes temas. Ele se abre muito durante o filme, mostra sua casa e sua vida. Era importante ter a aprovação dele.


Mais do que eu possa me reconhecer é divido por cenas, colocando em cheque qualquer ação e palavra de Darel. Até que ponto esse jogo de reconhecimento do que é real ou interpretado se deu na rotina? Quais limites foram dados para entrar ou não no filme?

Como tenho trabalhado com filmes híbridos, tentei negociar com o Darel dele interpretar algumas ideias para o filme, mas ele era contra, dizia que iria ficar falso, que ele não era o Paul Newman. Fiz questão de inserir a palavra “cena” na montagem, como uma provocação a ele. Não há diferença entre ficção e documentário. Um ator de Hollywood e um personagem de Eduardo Coutinho têm a mesma função numa tela de cinema.

Em Mais do que eu possa me reconhecer, é mais interessante sentir o jogo entre minhas imagens e as imagens dele do que detectar o que é ou não ficção. Quando Darel se filma, sozinho, entra na frente de sua câmera e faz uma ação, é “pura ficção”, auto-representação. Juntando os materiais, investimos mais em nos libertar de qualquer explicação sobre a natureza das imagens e simplesmente contar uma história, as vezes com minhas imagens, com as imagens dele, com meus textos, com textos dele… Não importa. O filme é uma junção de nossas cabeças e artes.

Assistindo Mais do que eu possa me reconhecer associei Darel a alguns personagens de seu curta Papo de Botequim (2004), principalmente sobre a fuga da rotina e a melancolia embutida em cada depoimento, por mais que o bom humor reine. Darel, como extremo oposto dos personagens do curta, se legitima como mediador do curso do filme, como quem filma e quem é filmado, dentro deste perfil. Quanto de autonomia ele teve para sugerir e o quanto você teve de autonomia para exibir a intimidade do artista?

Ele sugeriu muitas coisas durante as filmagens. Algumas das sugestões podem ser ouvidas de sua própria boca durante o filme, como por exemplo quando sugere que podemos misturar nossas imagens, que acabou sendo o principal conceito do filme. Ele percebeu, antes de mim, que eu também era um personagem do filme. Isso fica claro quando fala do encontro de nossos olhares. Darel não interferiu na montagem. Fiquei realmente livre nesta etapa.

Em certos pontos do filme há embates espontâneos entre você e Darel, diluídos em discussões sobre formas de filmar e exibir. Como o restante do filme, estamos falando de uma situação de reflexos, que invariavelmente criam identificação e atrito. Gostaria de saber mais sobre os espaços dados a Darel, os tempos em silêncio, qual o seu entendimento de interagir ou não com Darel e consequentemente ser mais um personagem do filme? Como não entregar o filme ao artista e não usá-lo somente como “homenagem”?

Os embates eram causados por dois motivos principais. O primeiro era quando eu perguntava sobre algo que ele já tinha me falado, mas eu gostaria que isso fosse registrado pela câmera. E também por questões tecnológicas, o uso ou não do computador, a melhor forma de armazenar o material e copiar arquivos. Cada um defendia o seu modo de fazer.

A minha entrada como personagem do filme não foi programada e tem uma explicação simples: estávamos quase o tempo todo sozinhos naquela casa enorme. Não tinha como não interagirmos. As vezes esquecíamos que a câmera estava ligada e falávamos de outras coisas ou sobre o próprio filme que estávamos descobrindo juntos. Sempre que Darel olhava para a câmera, na verdade ele olhava para mim. E a lente era meu olhar.

Quando Darel sai de seu casulo não há mais a ideia sobre o que é “filme” ou o que é “Darel”, num encontro simbólico muito bonito. Esse encontro imagético é reforçado pela trilha, que é muito significativa em Mais do que eu possa reconhecer. Como ela foi pensada e composta dentro da proposta orgânica do filme?

Não sei se é orgânico. Mas, o processo de montagem foi nos permitindo gradativamente interferir com muita liberdade nas imagens feitas por Darel. Ele sempre usava músicas clássicas em seus vídeo-artes. O que utilizamos na maior parte do tempo. Usar uma música oposta no fim do filme faz parte deste jogo de explorar todos os significados que aquelas imagens e momentos poderiam revelar.

Recentemente vemos filmes independentes encontrando seu caminho em Video on Demand, via internet ou em TV por assinatura. Você acha que este é o caminho mais prático no atual cenário de distribuição de filmes? Como você vê a distribuição de filmes?

Acho que sim. Existem muitas possibilidades de distribuição. É um momento de transição e cada filme deve encontrar o melhor caminho de ser visto. O êxito de um filme não está ligado diretamente ao seu público no circuito comercial.

Mais do que eu possa me reconhecer vai estrear nas salas de cinema no final deste ano. Uma distribuição mais tradicional. Vamos ver se será um bom caminho!

Entrevista publicada originalmente no Multiplot!

A Girl Walks Home Alone At Night (Ana Lily Amirpour, 2014)




O texto de Tales A.M. AB’Sáber Cabra Marcado Para Morrer, Cinema e Democracia presente no livro Eduardo Coutinho (Org. Milton Ohata, Editora Cosac Naify, 2013), o psicanalista afirma sobre Cabra Marcado Para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984): “Pode-se argumentar que o filme, realizado por volta de 1980 até 1984, trazia em seu estilo o espírito mais forte da tomada do espaço público pelos novos sujeitos do tempo (...) estava comprometido em recompor a história das gerações passadas”.

Partindo da possibilidade comparativa na postura e visão do tempo abordada por AB’Sáber, A Girl Walks Home Alone at Night faz, em sua esfera, protegido pela justificativa de gêneros cinematográficos, a dominância das ruas do país como resposta à era Xá Mohhammed Reza Pahlevi e questiona o futuro do Irã, ainda assombrado pela ditadura religiosa. A primeira noção de subversão por parte do filme da jovem Ana Lily Amirpour é de se tratar de uma apropriação generalizada de pilares do cinema americano partindo de situações inóspitas que traduzem a urgência de uma nova interpretação dos tempos, fazendo o espaço público o local de assombrações. 

A Girl Walks Home Alone At Night a princípio se nega a mostrar seu cerne e coluna, totalmente contrário ao filme de Coutinho. O primeiro ponto na construção da atmosfera de terror é a sugestão do que se deve acreditar no filme. No caso, para crer em vampiros, deve-se crer em outras aberturas, dentro e fora do gênero e narrativa.  Ana Lily Amirpour exibe penumbras e um bairro entregue ao mal, o batizando literalmente de “Bairro do Mal”. O filme se passa em ruas vazias, com poucas sequências internas, referente a um mundo frio e propenso à violência e traições – arquétipo do Western, influência clara de Amirpour. A câmera da diretora encontra apenas homens e a única mulher, obviamente, está a serviço do prazer masculino e da consequente opressão que a cultura por tantos anos alimenta. É o ponto de partida para o exercício de contração que o filme faz e se resume. Não existem pontos ideais para expurgar a tensão que Ana Lily Amirpour constrói através da figura de uma vampira – existe, no caso, um retrato rotineiro do que é o terror, sempre transpassado para a ótica feminina. 

Trata-se, portanto, de um filme de vingança plena que traduz a resposta para a tortura que mulheres são submetidas diariamente no Irã, sempre, claro, na posição do anti-herói. Em diversas oportunidades, a diretora dialoga com a cultura norte-americana, em especial a da cultura white trash – adictos e traficantes, consumo e dividas –, talvez usada como metáfora espaçada, porém pertinente no filme como afronta. Há uma série de quebras de tradições, regras e ideais iranianos dentro de uma linha mais interessada na simbologia do medo como campo perfeito para análise do que é, de fato, o terror.

A Girl Walks Home Alone At Nightsugere a desconstrução de um gesto subversivo às convenções e à História (em especial, a cinematográfica) do Irã, mas não do gênero. Ele é feito como um esbarro proposital no cinema independente americano em seu viés dramático e regrado a respeito de um filme de suspense moderno. Também com o suporte ideal para a noção de uma trama que estará sempre em crescendo – muitos ruídos, planos estáticos, a rápida tradução da simbologia de cada personagem -, o filme escolhe a quem castrar; Mora aí o trunfo do longa de Amirpour. Como um soco trocado com o espectador, o filme se justifica pela dor, que talvez não se manifeste como o sensacionalismo gosta no Bairro do Mal, mas o suficiente para e apontar para o monstro real e afirmar sua sobrevivência. Amirpour usa a mesma perspicácia e dormência de personagens de alguns de seus referenciados (Jim Jarmusch, John Cassavetes) e não oferece a solução – sugere o placebo que está em todo tipo de filme, dos americanos aos iranianos, como um simples gesto de lamentação sobre caminhos aparentemente tão distintos, mas que levarão ao mesmo lugar.

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