BILLI PIG

O epítome da identidade nacional está em Billi Pig, novo longa de José Eduardo Belmonte (Se Nada Mais Der Certo, Meu Mundo em Perigo). Surpreende a escolha de Belmonte pela comédia, ainda mais por manter sua característica de desconstrução de persona, mesmo que na forma que atenha à temática. Futebol, samba, revistas de celebridades, programas de TV, fé e a culpa católica, má fé, álcool, sexo e a incessante busca pela fama estão lá, sempre em tom novelesco aliado ao flerte com as chanchadas.

O proposital mau gosto (figurino, números musicais e diálogos que remetem a Falsa Loura (2007) de Carlos Reichenbach) é um eixo para o filme; Belmonte coloca seus personagens no meio termo entre a ingenuidade e a malandragem. Isso possibilita a inclusão de um mote caricato a todos os personagens – cantam a vitória, associam trajes ao comportamento e escondem a infelicidade com drama: trampolim perfeito para gags que ganham moldura televisiva pela montagem que arrasta a narrativa.

O famoso “se dar bem” ganha óticas distintas através dos malandros Wanderley (Selton Mello), o “padre” (Milton Gonçalves em excelente atuação) e do traficante Boca (Otávio Muller) e sua trupe. Entre eles, está a aspirante à atriz Marivalda (Grazi Massafera) e seu porquinho de brinquedo e alterego Billi, que toma feições de Deus e diabo, dependendo do momento que sua dona vive. À margem está um leque infinito de personagens que pouco fazem pelo filme, mas que estampam o pôster com fins lucrativos.

Billi Pig conquista pela ousadia ao ir de encontro com o imaginário brasileiro que engloba harmoniosamente almoços de família, rodoviárias cheias, celulares com som alto, programas de TV dominicais e outras características sem amarras e retoques; O longa de Belmonte rapidamente se configura como uma caricatura e não esconde a hermeticidade que o gênero prevê.

★★
Billi Pig (Idem, Brasil, 2011) de José Eduardo Belmonte

O PORTO


Simplicidade e ternura dominam a narrativa de O Porto, longa que aponta Aki Kaurismäki (Um Homem sem Passado) imerso em referências e econômico tecnicamente para contar a batalha do ex-escritor e agora engraxate boêmio de péssima reputação Marcel Marx para proteger o garoto Idrissa – que viajava ilegalmente em um contêiner encontrado em Le Havre – e ajudar sua esposa a se livrar de um câncer.

Em sua sombra, está o detetive Monet (outra clara referência ao impressionista homônimo nascido em Le Havre) que busca respostas sobre o sumiço do garoto.  Kaurismäki separa a realidade de Marx em duas partes para posteriormente uni-las no bar, a segunda casa do engraxate, onde a frieza de sua vizinhança é derrubada em prol da igualdade e da esperança. A narrativa de O Porto é implicitamente contaminada por essa esperança e pelo mesmo viés Kaurismäki usa a comicidade na história, nesse caso, a referência é o diretor Jacques Tati e seu humor exclusivamente físico.

Para ajudar Idrissa e sua esposa, Marx necessitava mudar o que havia ao redor e principalmente sua interpretação do mundo; Kaurismäki novamente usa a referência de Tati e mantem o otimismo impresso na leveza de seu filme – uma antítese à análise atemporal sobre a imigração e xenofobia – como a coluna do filme, a sequência da fuga, representa: Karl Marx, Monet e Franz Kafka se encontram pela oposição à impessoalidade e a burocracia.


O Porto (Le Havre, Finlândia/França/Alemanha, 2011) de Aki Kaurismäki

DRIVE


Drive revitaliza o cinema de ação oitentista utilizando as mesmas abordagens e motivações para seu anti-herói, vivido por Ryan Gosling. Trata-se de um exercício estilístico do dinamarquês Nicolas Winding Refn que se desassocia da dureza da trilogia Pusher e de Bleeder para realizar um filme tipicamente americano, ainda que siga a cartilha (na ordem: plástica, antli-clima, texto) de seu último filme, o brilhante O Guerreiro Silencioso.

A congruência da brutalidade que o gênero pede ao multifoco narrativo está na posição adotada pela câmera de Refn – sempre coadjuvante e tangente ao espetáculo visual – que constrói uma constante (tensão + plástica) que é quebrada pela relação do protagonista aos seus conflitos internos, mas que é retomada com a trilha sonora condensada ou a exposição destes conflitos pelo choque da conversão deste em um homem frio.

Composto por diversas referências (Taxi Driver é a maior delas), Drive faz oposição à complexidades, mas dá importância aos detalhes que são dissolvidos pela excelência de seu diretor, que transforma em harmonia o encontro da aura angustiante à estética moderna. Justifica o prêmio de melhor diretor no último Festival de Cannes.


Drive (Idem, EUA, 2011) de Nicolas Winding Refn

TÃO FORTE E TÃO PERTO


“O pior dia”, como o garoto Oskar (Thomas Horn) chama o dia 11 de setembro de 2001 coloca Tão Forte e Tão Perto num contexto primário de objetivos – a aura fantástica que rege o processo de continuidade após o trauma serve de contraponto à força que o assunto reserva.

O fardo que um país inseguro carrega faz Stephen Daldry (O Leitor, Billy Elliot) construir um quadro poético sem concomitância ao imaginário infantil – razão maior do filme ter um roteiro tão problemático. Sem refinamento entre a alusória fase de amadurecimento de Oskar e os sintomas comuns de um tempo crítico – síndromes, questionamentos e a frágil relação com o desconhecido (o futuro e principalmente com os estrangeiros), Tão Forte e Tão Perto é oscilante; metralha informações para o mote investigativo e suspira com o lado lúdico, mas nunca os une em contexto a partir do livro de Jonathan Safran Foer.

Aproximar tema e abordagem alternativa neste caso é uma manobra arriscada – o exagero distancia o espectador, surrado por este tema há onze anos. Os bons momentos estão justamente quando o diretor se desamarra do assunto para focar-se de forma unilateral à emoção; os ataques são suporte, mas a desconstrução cabe a diversas óticas.


Tão Forte e Tão Perto (Extremely Loud & Incredibly Close, EUA, 2011) de Stephen Daldry

A INVENÇÃO DE HUGO CABRET


Com máquinas e ilusionismo. Filmes são feitos assim. A Invenção de Hugo Cabret vai do tom fabuloso à desconstrução de conflitos de um realizador sem maiores dificuldades. Martin Scorsese, responsável pela restauração e conservação de filmes através da World Cinema Foundation, usa Georges Méliès como representação dos primórdios do cinema, mas no longa também estão em imagens ou alusões os irmãos Lumière, Charles Chaplin, D.W. Griffith, F.W. Murnau e Buster Keaton, para citar alguns.

Em paralelo, Scorsese mantém a visceralidade da história de Hugo Cabret (Asa Butterfield), garoto assombrado pela orfandade em um mundo de pesadelos personificados pelo caricato Sacha Baron Cohen. Em A Invenção de Hugo Cabret, sequências e personagens definem gêneros e épocas do cinema.

Ritmado, lúdico e ousado, o filme serve como ode aos seus inventores sim, porém, durante seu desenvolvimento fica explícito que a unidade criada por Scorsese a partir do livro de Brian Selznick tenciona reflexões sobre a posição da indústria e dos consumidores de filmes – que padecerão junto aos artistas no mesmo mundo amargo que Hugo vive caso o coração não esteja em primeiro plano. Sonhe, fuja, crie, desconstrua. O terreno é seu, espectador. Terreno feito de sonhos. E máquinas.



A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, EUA/França, 2011) de Martin Scorsese

O HOMEM QUE MUDOU O JOGO


A história de O Homem que Mudou o Jogo não é das mais novas, é verdade. Porém, a ótica dada por Bennett Miller na transposição do livro Moneyball: The Art of Winning an Unfair Game de Michael Lewis para as telas foge de convencionalismos. As imagens de arquivo que abrem o filme e carregam forte carga dramática são diluídas na persona de Billy Beane (Brad Pitt), ex-jogador de Beisebol que gerencia o time Oakland Athletics e vê o time perder seus principais jogadores.

Billy é uma espécie de anti-herói e não sofre por isso. O sadismo faz parte do mercado que os engole em takes de câmera abertos. O esporte aposta em profissionais imersos na apostasia e comodismo que se choca com o plano de Peter Brand (Jonah Hill), que desenvolveu o Moneyball, onde o desempenho final das equipes é baseado em estatísticas e não nos resultados – clara alusão ao mundo dos negócios em geral e às relações profissionais, sempre urgentes e rasas.

O roteiro escrito por Steven Zaillian e Aaron Sorkin guarda para o protagonista enigmas que devem ser decifrados por nós sem ajuda de resquícios melodramáticos. Seus traumas o perseguem, mas nunca estão no cerne narrativo, como normalmente é para todos nós. Pitt entrega uma performance que reforça esta idéia, oscilando naturalmente entre a prepotência e a total insegurança. Ainda que seus moldes sejam ditados pela previsibilidade, O Homem que Mudou o Jogo acerta ao tender pelo uso da temática esportiva para desconstruir assuntos nada triviais.


O Homem Que Mudou o  Jogo (Moneyball, EUA, 2011) de Bennett Miller

A DAMA DE FERRO


A cinebiografia de Margaret Thatcher, única primeira-ministra da história do Reino Unido, toma em seu primeiro minuto um caminho dicotômico: intenso em variações de linguagem, o filme não escapa da suspeita de “beatificação” de sua protagonista com a força incontestável de sua intérprete, Meryl Streep.

Criativo na inserção de elipses que pontuam a autoridade e a perda de lucidez de Thatcher – que assume a posição de espectadora acompanhando sua vida em flashbacks - que permitem alusões justificadas pela idade – e implícito na construção de seu caráter, A Dama de Ferro se opõe à espetacularização narrativa; em tom monocórdico, o longa aborda os altos e baixos da carreira da  e a dependência da figura masculina. O tom melodramático dado pela diretora Phyllida Lloyd opta por abraçar Thatcher, e assim, automaticamente, abrir seu filme à suspeita.

A atuação de Streep ajuda na redefinição do senso de realidade; em certo ponto de A Dama de Ferro já não sabemos em qual Thatcher devemos crer. Se um filme nos abandona com uma questão como essa – por mais que Lloyd tente respondê-la criando ilusão dentro do ilusionismo maior que é o cinema -, com certa pungência, você, caro leitor, há de convir que o filme fez o seu papel. A intriga supera a busca por respostas, neste caso.


A Dama de Ferro (The Iron Lady, Reino  Unido/França, 2011) de Phyllida Lloyd

O ARTISTA

A primeira referência dentro do mosaico que constitui O Artista é Metrópolis (1927) de Fritz Lang, ainda nos primeiros segundos de filme. Na sequência seguinte, George Valentin (Jean Dujardin) recebe aplausos calorosos do público, passivo à metodologia criada por D.W. Griffith. No mesmo espaço de ação, está o humor físico disseminado por Charles Chaplin. Tudo isso na tradicional janela “1.33:1”, característica principal dos primórdios do cinema.

O filme dirigido por Michel Hazanavicius - diretor mais conhecido por paródias de filmes de espionagem - pode esboçar homenagens à invenção dos irmãos Lumière, porém não resguarda bases narrativas para criar senso de unidade e identidade. O conflito do protagonista vem da manipulação do que até então era considerado puro, intocável: o cinema mundo está ameaçado pela chegada de microfones aos estúdios e pela técnica de dublagem. Na metáfora imagética onde Peppy Miller (Bérénice Bejo) e George Valentin se encontram nas escadarias de um estúdio cinematográfico, o diretor os coloca em frente à previsibilidade mais deliciosa de se acompanhar – a história do cinema e a crise de um artista impregnada à narrativa clássica, como Nasce Uma Estrela, de George Cukor.
Porém, Hazanavicius logo se esquece do raciocínio para criar uma relação dicotômica com a ternura que cerca a nostalgia de O Artista; O filme vira uma viagem ao passado sem definições e alegorias necessárias para justificar a leitura aos moldes do cinema em Hollywoodland.

O que busca Hazanavicius ao enaltecer o romance entre Valentin e Miller e os gracejos de um cachorro adestrado ao conflito existencial que cerca a questão da pureza em qualquer artista? Um respeitável público que aplaude conforme seus pedidos como seu protagonista faz no início do filme? O Artista, assim, tenta pegar o público pelo apelo do resgate sem adular o mercado e sim sua metodologia; A composição de um tempo mágico que está completamente à margem da história de seus personagens.


O Artista (The Artist, França/Bélgica/EUA, 2011) de Michel Hazanavicius

HISTÓRIAS CRUZADAS


Baseado no livro The Help de Kathryn Stockett, Histórias Cruzadas pauta a profetização da era de mudanças nos EUA; o sonho americano vivia o ápice de sua antítese e como reflexo, a intolerância deitava-se sobre a liberdade. A postura hipócrita das famílias do subúrbio de Mississipi cultuava certa inocência para maquiar a crueldade ao tratar diferenças raciais.

O longa dirigido por Tate Taylor foca o processo de produção do livro, aqui escrito por Eugenia Skeeter (Emma Stone) em parceria com uma dúzia de domésticas vítimas de maus tratos transformadas em caridade através da ilusão que o tempo cultuava. Era o tempo em que produtos representavam a salvação e a liberdade; esta inversão de valores que refletem traumas até hoje discutidos por diretores que focam o subúrbio americano como pilar narrativo à exemplo de Todd Solondz e John Waters.

Histórias Cruzadas garante uma boa trama, elenco afinado, direção que sugere a composição de passado (escravidão) e futuro (o fim da era Kennedy, os panteras negras e revolução feminista) sem utilizar elipses; o ego de seus antagonistas serve como previsível fim para um conto moral necessário.
Se por um lado as idéias de Taylor funcionam bem como suporte político, o filme ganha dormência pelo exagero da idéia de melodrama; tudo ganha um suposto refinamento passional, doloroso. A atraente postura libertária que o filme ameaçava adotar às personagens é deixada de lado rapidamente para simplesmente tornar-se acessível. Afinal, lágrimas vendem bem mais que o suor. Novamente, a antítese do sonho americano.


Histórias Cruzadas (The Help, EUA, 2011) de Tate Taylor

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