Fantaspoa 2015

Atendendo aos pedidos de alguns amigos posto aqui meus comentários sobre os filmes vistos no Fantaspoa 2015 originalmente publicados no Multiplot!.

LIZA, THE FOX-FAIRY (Liza, a rókatunder, Hungria, 2015) de Károly Ujj Mészáros

O filme de Károly Ujj Mészáros se faz nas margens - boa parte do filme é composto por cenas suspostamente intensas que encontram uma saída cômica surpreendente. No miolo, o romance sintetico sobre uma enfermeira em busca do amor. Ao redor, algo muito parecido com as gags de programas humoristicos japoneses com sensibilidade narrativa, algo que só Hitoshi Matsumoto sabe fazer atualmente. A enfermeira é vítima do espírito ciumento de um popstar japonês morto há décadas que gradualmente aumenta o nível de violência conforme os pretendentes aparecem, calhando em uma investigação policial interminável. Por Liza, The Fox-Fairy parecer um filme de temas indefinidos no sentido de qual suporte usará para definir um desfecho (e consequentemente definir sobre o que é o filme), ele consegue ser tanto um filme romântico quanto um escracho sem limites sem que pareça uma contradição ambulante.

HARDKOR DISKO (idem, Polônia, 2014) de Krzysztof Skonieczny

Há na transição de Krzysztof Skonieczny da direção de clipes para a narrativa uma dose considerável de influência de Michael Haneke. O suspense está na economia de palavras, na sinalização de uma ação futura ou na distância e cinismo que um abismo (social ou existencial) traz na história que se esconde por opção. Hardkor Disko é feito pela repetição de gestos, de planos e situações através do olhar tendencioso ao nicho criticado (uma família polonesa de classe alta), extremamente preocupado com a perfeição (geométrica, arquitetônica) e inibe qualquer sugestão política pela noção de que isso não interessaria a quem consome sensacionalismo. Eis o tiro no pé do filme: o separatismo completo oriundo da ideia que gênero deve esvaziar qualquer tipo de discussão. Enfim, Hardkor Disko é ônus e bônus como rotina e surpresa, respectivamente, em um mundo frio e autodestrutivo.

O BARBEIRO (The Barber, EUA, 2014) de Basel Owies

Um filme sobre farsas que poderia muito bem estar nas mãos de David Fincher ou Bong Joon-Ho. O Barbeiro vai além da teia onde a atuação é o regime vivido por todos os personagens do filme - suas representações dualísticas são sempre nítidas para dentro e fora do mote principal - e assombra a noção que a influência é a maior vilã de grandes tragédias nos Estados Unidos, ainda que este norte, claro, também seja uma grande mentira. O Barbeiro é genérico em seu feitio e mais parece uma sátira às recentes tentativas de reviver o cinema noir - o que vem acontecendo com frequência maior nos últimos anos - e larga a questão sobre sua reais intenções como qualquer personagem do filme fez em algum momento. 

THE FRAME (idem, EUA, 2014) de Jamin Winans

Mais um filme que seria facilmente abraçado por qualquer grande estúdio americano. The Frame se equilibra por uma hora e meia na tênue linha que o separa do ridículo com a história de interaçao entre dois seriados de TV de segunda linha. Com o mínimo de bom senso para o equilíbrio entre fantasia e drama, o filme tem espaços para a sugestão de debates sobre a dependência que este tipo de entretenimento produz e como eles se reproduzem com poucas diferenças pela audiência. Enfraquecido pela pretensão de ser um filme maior que pode ser - afinal, assim como os seriados imaginados, The Frame também é um filme menor por diversos motivos, principalmente pela afirmação que a direção (em vias literais) é mais importante que o próprio espetáculo, sem dar o valor cinematográfico que estas imagens poderiam reproduzir. É claro que interação dos personagens leva ao romance e a ideia de salvação e regeneração que somente narrativas podem fazer se concretiza. Este é o pulo do precipício quando The Frame, enfim, resolve ser um filme sobre produções audiovisuais de maneira mais literal entre incontáveis fade in/fade out. A sugestão feita em uma hora e meia já era suficiente.

NINJA TORAKAGE (Ninja War of Torakage, Japão, 2015) de Yoshihiro Nishimura

Ninja Torakage confirma que Yoshihiro Nishimura se sai muito melhor em curtas ou filmes de episódios por saber construir introduções e saídas urgentes. Torakage parte de um fiapo narrativo muito utilizado - um mapa partido ao meio, a busca pela outra metade e um acerto de contas - com um mundo de personagens e referências com a imposição de Nishimura em costurá-los e dar algum sentido em sua reação passional. O importante para o diretor é  dar ao que é construído um sentido e seguir com seu mundo de fetiches que já passou por mutantes, zumbis, monstros, etc. A crença de que o que é pobre - estilo e narrativa - pode justificar o humor que outrotora era o carro-chefe de seus filmes como Tokyo Gore Police e Helldriver chega ao limite tão rápido que o filme se resume ao desajeito de justificar o que é gratuito.

The Midnight Swim (idem, EUA, 2015), de Sarah Adina Smith

Ainda que o núcleo de The Midnight Swim seja afirmado em um drama independente muito próximo aos moldes de um filme qualquer de Joe Swanberg, sua força está no mesmo princípio dos filmes de M.Night Shyamalan – a condição humana a partir da relação com o que está ao redor, aqui representado por um lago amaldiçoado em uma ideia muito próxima a de Fim dos Tempos. Toda trama está à serviço do luto e o terror está justamente na ciência de que o lago não sumirá. Sarah Adina Smith justifica seu filme como um found footage gravado por uma das irmãs, que se reunem após a morte da mãe e são atormentadas pelas lembranças e eventos sobrenaturais.

Goodnight Mommy (idem, Austria, 2014), de Severin Fiaza

A forma com que Severin Fiaza desenvolve o filme, indo de um coeso drama sobre os valores familiares para um brutal filme de terror e tortura faz de Goodnight Mommy um ótimo exercício de tensão e atmosfera. Fiaza parece ter muito cuidado com os limites que o lado espiritual da história poderia levar ao filme e encontra nele o ponto perfeito para um desfecho fortíssimo.

 A Distância (La Distancia, Espanha, 2014), de Sergio Caballero

Com a mesma estranheza de seu filme anterior, Finisterrae, Sergio Caballero mescla o humor vindo do espanto e a percepção da metáfora da formação de uma ideia e o funcionamento do cérebro. A forma pessimista para um mundo sem divindades, apoiado no ego e cálculos matemáticos como argumento máximo para a autodestruição da raça humana.

Wyrmwood (idem, Australia, 2015), de Kiah Roache-Turner

“Mad Max meets Dawn of the Dead” – assim o release apresenta Wyrmwood. É justamente do lado fetichista dos dois filmes citados que Kiah Roache-Turner se utiliza para fazer um filme de mascarados versus zumbis sem se preocupar com justificativas. O que vale em Wyrmwood é o espírito sugerido, de anarquia e a subversão da posição de cada grupo na história – surpreendente respiro ante tanta gratuidade. É possível resumir o filme com cenas de perseguição, tiroteios e humor – campo saturado e que exige originalidade para ter relevância. Algo que Wyrmwood não faz.

 Deserto Azul (Idem, Brasil, 2014), de Eder Santos

Na primeira camada de Deserto Azul se vê um número gigantesco de possibilidades de desenvolvimento narrativo quanto a um futuro próximo e seu iminente desespero. Não demora para o filme se revelar como uma aposta de segmentar (e sustentar) o discurso através do aspecto visual – provavelmente o que há de melhor aqui. Fica a sensação de que se o filme não se levasse a sério, utilizando até mesmo o tradicional viés pessimista, Deserto Azul seria um bom filme político.

Lobocop (WolfCop, Canadá, 2014), de Lowell Dean

É raro um filme com esta proposta ser consistente e ter noção de suas bordas. Lobocop tem ritmo, boas doses de humor e faz alusões às histórias clássicas do lobisomem, à falência social abordada por Robocop e a policial de Dirty Harry, mas o que chama atenção é como Lowell Dean sabe medir as forças do filme, sem que ele pareça uma homenagem em formato exploitation.

Redentor (idem, Chile, 2014), de Ernesto Diaz Espinoza

Há no filme de Ernesto Diaz Espinoza a preocupação estética na construção de planos abertos e na coreografia das sequências de ação, remetente aos códigos dos filmes de arte marciais chineses. Tão importante quanto, a aura trash é mantida na desmistificação do herói western. A eterna busca por paz do homem cristão passa por provas onde só um acerto de contas possibilitaria tal utopia na base da pancadaria, tiroteios e suspense.

Mad Max - Estrada da Fúria (George Miller, 2015)




A única coisa que é possível dizer logo após a sessão de Mad Max é que George Miller sabe muito bem como orquestrar o ápice de duas horas que é o filme. São poucos respiros, mas com norte suficiente para o desenho de conflitos, em especial os de Furiosa e de Max. A brincadeira dos sonhos dos meninos (uma aventura sem fim) é tomada pelas meninas e se torna menos fetichista pois a partir daí há uma breve sugestão de que Mad Max se tornaria um filme de narradores e não de corpos (e máquinas) em movimento. Mad Max é um filme fantasioso por motivos óbvios, mas seu feitio é como se Miller fosse um  mero espectador - com todos as instrumentos de registro possíveis - deste caos. Ah, a primeira perseguição na tempestade de poeira é de um primor absurdo.

Fantaspoa 2015


Para quem acompanhou nos últimos anos meus comentários sobre os filmes da programação do Fantaspoa aqui no blogue, minhas ideias e as de Daniel Dalpizzolo acerca dos filmes deste ano estão no Multiplot! A cobertura será dividida em duas partes e a segunda parte deve entrar no ar até o fim dessa semana.


Noite Sem Fim (Jaume Collet-Serra, 2015)




A linha reta é o caminho mais longo para ir de um homem a outro, a proximidade é uma ilusão; o face a face, um perigo; o amor, uma tirania. (Dodeskaden, Akira Kurosawa, 1970).

Para o bem ou para o mal, Noite Sem Fim é um filme enganoso. Pois, se a premissa, muito próxima a de Sem Escalas (2014), filme anterior de Jaume Collet-Serra – homem de moral execrada em busca de redenção em microcosmo repleto de anti-heróis -, indicara um modelo narrativo próximo ao absurdo, Noite Sem Fim se agarra apenas à freneticidade durante sua primeira hora como forma de encurtar uma linha de encontro. Neste espaço, Collet-Serra sonega suas intenções enquanto justifica o enredo composto por aparições – uma teia de personagens é tecida entre tantos cortes e propicia uma reunião relâmpago que possibilita ao diretor em uma só sequência afirmar a posição deslocada destes homens na sociedade; alguns por opção, outros, não. Alguns vivos por necessidade, outros, entregues ao tempo.

É um tipo de cinema indefectivelmente feito de corpos e como eles dominam o espaço urbano com suas necessidades, da mobilidade ao vício, mas que provém espaços para o desenho de um estado de espírito tal qual o de Abel Ferrara em O Rei de Nova York (1990) sobre Nova Iorque fragilizada pelo crime e em constante alerta, antes das medidas tomadas por Rudolph Giuliani a partir de 1994. Estes espaços em Noite Sem Fim medem o estado de tensão e terror após os atendados de 2001 sem que ele tome o papel de protagonista. As ruas refletem a busca incessante da imprensa por culpados e a (hoje) iminente justiça, observadas com distância suficiente para encarnar o antagonismo. Porém, a lacuna principal e que rege o filme é a da figura paterna deixada por Jimmy (Liam Neeson), onde seu contraponto, Shawn, vivido por Ed Harris, encarna um tipo de representação mutante muito comum na filmografia de Jaume Collet-Serra, em especial como ela serve de pilar para todos os seus filmes, sempre cambaleantes na corda da ética. Harris remete a mesma brutalidade e cinismo de William Walker, talvez o grande papel de sua carreira, em Walker (Alex Cox, 1987).

A história de ascensão moral de Jimmy acompanha o arquétipo de busca e fuga pelas ruas de Nova Iorque com licenças e referencias que levam a câmera de Serra do Madison Square Garden ao Brooklyn e desemboca em um conjunto habitacional muito similar ao inferno futurístico de Dredd (Pete Travis, 2012), onde se encerra a primeira metade do filme e que mais transparece a influência dos games na narrativa. A ideia até este momento é que Nova Iorque é um calabouço cercado pelas luzes de uma tempestade. Entre a penumbra e sombras, o que se vê além de rostos em planos fechados, são rastros de bala e luzes de neon. E o giro da trama vem, como em Sem Escalas, pela ética, que ganha outra face como sonegação de sentidos ao filme: a correria agora é outra.

Cai por terra a noção de que pulsa um Estado ao redor de Jimmy e suas obrigações profissionais e morais exercendo a função de contracampo permanente; o quebra-cabeças ganha frouxamente suas peças fundamentais, cheias de sentimentalismo e o raciocínio constante de um filme de sugestões se vai na afirmação de vida do protagonista, este que sempre foi dado como morto – financeiramente, moralmente, profissionalmente. O tom fabuloso motriz que justifica qualquer resvalo ao absurdo segue a mão contrária de uma pista que encontra sua bifurcação.

Há espaço para tentativas sem fôlego de bons momentos, como a sequência de tiroteio entre vagões (há um mundo de referências nesta cena, dos westerns aos tiroteios entre contêineres de filmes contemporâneos), mas Noite Sem Fim corre desenfreadamente para colocar os pingos nos “is” seguindo a cartilha da redenção de um homem cercado de erros. Moral e justiça estão, novamente, à frente de qualquer simbologia sobre renúncia e recomeço. A sedução que Collet-Serra construíra em forma de atmosfera sufocante se diluí na lembrança (ou a falta de) e que volta a enganar ao construir dois epílogos, suportados por um tipo de relação artificial, tão artificial quanto o local que Noite Sem Fim habitou, tão superficial quanto o convívio de toda teia construída para obter o que interessa a cada um deles, o que de certa forma resume o nosso tempo: além do ego, só existem sombras.

Texto publicado no Multiplot!

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