DENTRO DA CASA


Há muito tempo François Ozon rodeou gêneros e regras pré-estabelecidas em sua filmografia. Seja no seu trabalho mais conhecido, Swimming Pool ou na “pequena tragédia” que foi seu último filme, Potiche – Esposa Troféu. Como resposta à altura, Ozon adaptou o livro de Juan Mayorga e nada mais faz que uma ode às narrativas.

Nos primeiros minutos de filme, o professor Germain (Fabrice Luchini) lê para sua esposa a redação escrita por seu aluno, Claude, contando como foi o fim de semana na casa de seu amigo, Rapha. A partir deste fio, Ozon concebe diálogo com o público através do jogo de identificação no que se diz respeito aos modelos narrativos. Da auto-referência, amplificando os dias de Sitcom – Nossa Linda Família à consideração do estudo básico do cinema em relação ao teatro e espaço-plateia, desenhada com maestria por Alfred Hitchcock em Janela Indiscreta e o jogo de gêneros, indo do thriller psicológico ao declarado pastiche, Dentro de Casa é o esplendor criativo que Ozon almejava.

Acompanhar o desenvolvimento do desejo de Claude em relação à família de Rapha e de Germain ao seu vouyeurismo sem limites torna-se prazeroso pelos nuances construídos pelo diretor, ainda que o método se repita – principalmente em seu epílogo. Idealizado por boa parte em narração em off ou leitura direta do texto, como o exercício de pré-produção envolvendo o elenco, Dentro da Casa oferece subplot e reviravoltas como um bom tributo deve ser, mas sua força está realmente na intenção de jogar com as possibilidades infinitas de um bom roteiro.

Dentro de Casa (Dans La Maison, França, 2012) de François Ozon

O ÚLTIMO ELVIS



Elvis Presley, o "inventor" do rock, é mais um da lista de heróis americanos. O músico, falecido em 1977, tem homenagens em nomes de rodovias e ruas e um museu dedicada à sua intimidade, para citar algumas. Na Argentina vive Carlos, operário que prefere se esconder atrás da persona do cantor norte americano, assim aumentando a renda mensal com shows em cassinos e asilos. O Último Elvis tem a silenciosa guia da ideia de sucesso a partir do capital e status.

Elvis e Carlos dividiram da mesma angústia e insatisfação. Carlos, também pai de uma “Lisa Marie”, apesar do que acontece ao seu redor que o catapulta para uma nova ótica da vida com um possível acerto e a sensação de plenitude, é imerso pelo objetivo que é ser, de fato, Elvis. O capital é para Carlos, o status, para Elvis. Basta escolher a quem seguir.

Dirigido por Armando Bo, O Último Elvis é configurado por abismos; apresenta seus personagens e cria um abismo – proposital, mas que rouba o ritmo do filme. Volta ao prumo e se autosabota novamente, como seu protagonista. Sem intenções de captar de grandes expressões ou desenhar conflitos, Bo capta atitudes mundanas e extraordinárias da parte de seu protagonista, fadado ao objetivo de viver constantemente num espetáculo composto pelo medo, afinal, o “fracasso” está à porta.

Apesar de suas intenções no quesito dramático, Bo é contido em desenhar mise en scène e representações, que, unido aos abismos citados, freiam de vez o diálogo com o espectador. Da convocação ao abismo e o – espetacular – reencontro entre realizador e público fazem de O Último Elvis um filme irregular.

O Último Élvis (El Último Elvis, Argentina, 2012) de Armando Bo

A CAÇA



Seja por redenção ou analogias desenfreadas, a verdade é que A Caça coloca Thomas Vinterberg de volta ao prumo. Diretor de Festa de Família, representação máxima do movimento Dogma 95 criado em parceria com Lars Von Trier e outros diretores, Vinterberg ousa novamente em tema delicado, algo ensaiado em seu antecessor, o belo Submarino,  ainda que esteja muito longe das regras provocativas do movimento que o consagrou e pavimentou a estrada para filmes de qualidade duvidosa como Dogma do Amor e Querida Wendy.

Focado na dormente rotina de um homem acusado de pedofilia e de comparações inerentes à fragilidade da vida, que pode sucumbir a qualquer momento – daí a metáfora máxima em relação ao caminho tomado pelo diretor; sem julgamentos, A Caça coloca a sociedade como objeto de estudo. Os motivos que levaram à repressão – de mesmo efeito para o espectador - de um professor de escola fundamental acusado reverberam questões acerca da formação social destes alunos.

No condado onde Lucas (Mads Mikkelsen, premiado por sua atuação no último Festival de Cannes) vive as decisões em conjunto à priori tendem justificar o decreto generalizado, seja pela imaginação fértil das crianças ou dos pais que pouco se dedicam aos filhos e nada sabem sobre o que está ao redor. Em cheque, a moral, como uma espécie de reflexo, toma o caminho do imediatismo e do conforto.

Dentro do pavor insinuado ante o assunto, Vinterberg tem como virtude a consciência como fator ideal para diluir o impacto do tema. Lucas, antes da figura aterrorizadora para um grupo precipitado, presos aos fantasmas que a imaginação desenha, naturalmente e justificadamente, é um homem que se coloca invariavelmente como pilar para autoanálise de cada morador do condado, como sugere o momento da ceia, uma das belas cenas do filme.

 
A Caça (Jagten, Dinamarca, 2012) de Thomas Vinterberg

ENTRE MIM E ELES



O coletivo de Fortaleza Alumbramento, emblema do chamado novíssimo cinema brasileiro, termo criado a partir do prêmio dado ao conjunto de diretores por Estrada Para Ythaca na 13ª edição da Mostra de Tiradentes, é incansável. Nos últimos anos, cerca de seis filmes, entre longas e curtas-metragens foram lançados em festivais ou via internet.


Ao realizador/curador/crítico Marcelo Ikeda, coube a função de registro de Os Monstros, filme-chave para o coletivo após a consagração de Ythaca. E pela escolha do preto e branco, Ikeda se atém à margem do filme. Entre Mim e Eles pouco remete à obra em si, mas aproxima o abismo entre processo e produto. Trata-se de um documento focado em reações e espera. Nele, acompanhamos a longa e contemplativa espera para a filmagem, o desenho de cena e a resposta ao resultado, que nunca assistimos, afinal, Ikeda está interessado em firmar a ideia máxima deste novíssimo cinema: a amizade.


De filmes com pouco ou nenhum investimento, o grande eixo é o bom convívio entre a equipe, geralmente sem funções pré-estabelecidas. E Os Monstros é a grande prova deste meio. Um filme feito na base do suor e do amor, como seu ápice sugere. E o mesmo faz Ikeda em seu autointitulado filme-ensaio. Entre Mim e Eles, então, nada mais é que a extensão do raciocínio que impulsiona a produção de filmes sem ajuda de grandes empresas e que se apoia na cinefilia, invariavelmente o ponto de partida de Ikeda.

 
Entre Mim e Eles (Idem, Brasil, 2013) de Marcelo Ikeda

ESSE AMOR QUE NOS CONSOME


Como documento, Esse Amor que Nos Consome possui matérias diversas como ponto de partida. O filme de Allan Ribeiro tem como eixo um casarão no centro do Rio, onde a companhia de dança Rubens Barbot ensaia, mas sem condições de pagar o aluguel do local. Por outro lado, está o lado lírico, focado em performances que nada mais são que o raio-x das condições que o grupo vive, assombrados pelas visitas de possíveis inquilinos e alegres pela benção de fazer o que gosta, sempre sufocados pela megalópole. Como contrapeso está o lado espiritual, com representações e expurgos em relação ao espaço urbano.

Com estes elementos, Allan Ribeiro faz um mosaico desnorteado. É necessário ocupar os espaços com a “energia” da arte, consultar os deuses para sobreviver e executar seus dons como descarrego. Mas Esse Amor que Nos Consome não se define por possuir frágeis aspectos líricos, ainda que tenha momentos de extrema beleza, onde os dançarinos “costuram” uma coleção de retalhos representando a diversidade das grandes cidades, por exemplo.

A tentativa em construir um panorama híbrido a partir da visão do casal Rubens Barbot e Gatto Larsen aos poucos tenciona ao olhar religioso. O modus operandi daquela cia. não seria o mesmo sem a intervenção do lado espiritual. A fé, ao contrário da doutrina ocidental, aqui ganha o reforço cênico como pilar de discurso. A rotina, regida pela ansiedade por um novo patrocinador e a data do espetáculo é diluída em conversas descontraídas a fim de desconstruir personagens, mas sempre dominados por rótulos.

Portanto, a questão que acompanha o filme é se este trata de um discurso defensivo ou mero registro daqueles que tentam sobreviver da arte em um país que não favorece a vida à margem do tradicional “nove às cinco”.

Esse Amor que Nos Consome (Idem, Brasil, 2012) de Allan Ribeiro

DEPOIS DE LÚCIA


Ao desenhar no mar as cenas pontuais de Depois de Lúcia, Michel Franco declara a angústia vivida por Alejandra (Tessa Ia) e Roberto (Gonzalo Veja Jr.), como um ser prestes a se render à força do oceano.  A esperança de recomeço e a fuga do luto perecem a sequencia de ondas geradas por uma sociedade intolerante e violenta.

Ao se atrelar ao cotidiano de Alejandra na nova escola e o torto reinicio de Roberto, Michel Franco escolhe o caminho adormecido para debater o gosto pela maldade e a facilidade que seus caminhos oferecem, seja como forma de resolução, ultrapassar limites ou aumentar contendas. Seu eixo é o silêncio de Alejandra para denunciar a forma institucional da violência; extrair sentimentos deste panorama é o pulo de inventividade do longa, que levou o prêmio da Mostra Um Certo Olhar do último Festival de Cannes.

Sempre em tensão crescente, Depois de Lúcia aguça a percepção do espectador conforme os problemas de Alejandra mostram-se insolúveis. A dramaticidade aos poucos toma seu lugar comum até o seu ápice – o encontro com as ondas. O retrato que se expande rápido das ruas do México, onde brigas de transito e sequestros se equivalem ao crescente número de casos de bullying nos colégios e a sensação de impotência por parte das vítimas.

 
Depois de Lúcia (Despues de Lucía, México, 2012) de Michel Franco

NA NEBLINA


Embrião do cinema como arma de discurso, os códigos de moral e ética ainda regem grandes obras. Na Neblina, dirigido pelo ucraniano Sergei Loznitsa (Minha Felicidade), parte de um jogo de interesses entre alemães e bielorrussos durante a segunda guerra mundial.

Na Neblina traz características que consagraram Loznitsa como diretor de filmes duros, sem eixos, muitas vezes comandados pelo silêncio e inerência. Desta vez, em um período de luto e dor intensa, as relações tratadas pelo diretor partem diretamente destes códigos, mesmo que vidas possam se perder pelo meio do caminho. A teia criada pela intolerância faz caminho inverso aqui; toda força exibida, em boa parte do tempo desconstrói a alma destes homens, em boa parte do filme perdidos, seja dentro de uma floresta ou em lembranças recentes.

É curioso como o lamento toma todo vínculo com o passado destes homens. Relações afetivas são apagadas. O que vale é o momento, onde os alemães são representação do terror. Este é o ponto onde Na Neblina, apesar do suposto distanciamento se torna extremamente humano.

E a neblina que os engole vem com o peso de suas ações – seja pela consciência ou senso de justiça, Loznitsa revela outra face da crueldade durante a segunda guerra. Afinal, para alguns, estar vivo é o maior castigo.

 
Na Neblina (V Tumane, Alemanha, Países Baixos, Bielorrúsia, Rússia, Letônia, 2012) de Sergei Loznitsa

A PARTE DOS ANJOS



E lá está novamente o mundo agridoce e nada singelo de Ken Loach. Das relações humanas à salvação ou sobrevivência de um ambiente sujo, árduo e violento, A Parte dos Anjos usa o mesmo método que o realizador tem como estrutura para narrativas – com exceções, é claro – nos últimos anos.

Aqui, tudo corre em paralelo à ideia de redenção. Da apresentação da rotina de Robbie, típico pilar de Ken Loach – homem sem caráter, mas com um coração “enorme” – à transição e chance de recomeço, sempre pela ótica bem humorada de pastiche e no exagero de recursos cênicos - personagens a mais, verborrágicos, diálogos que pontuam margens e que ao longo do filme são esquecidas. Com a lógica do apelo ao seu protagonista, Loach tenta suportar seu filme no único acerto – o jogo com a questão da vilania em um mundo corrompido, mesmo sem angústias ou contratempos.

Acentuar paradigmas da imaginação popular dentro deste discurso moldado pela mesmice dá ao filme tom folclórico, sem acepções técnicas e, para os familiarizados com o trabalho de Ken Loach, sem frescor. Pela fácil digestão, A Parte dos Anjos pode ganhar alguns espectadores, o que justifica o prêmio dado pelo júri no último Festival de Cannes, mesmo sem o naturalismo exigido pelo gênero.

O cinema uniforme de Ken Loach, de personagens “selos” e comportamentos formulados não busca mais abordar ou sugerir discussões há algum tempo. O tema, supracitado, será atual até os limites do tempo. Porém, os mecanismos usados sugerem a apropriação do discurso.

A Parte dos Anjos (The Angels' Share, Reino Unido, França, Itália, Bélgica, 2012) de Ken Loach

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