GETÚLIO



Há em Getúlio uma imposição simples feita já na primeira sequência do filme; o atentado a Carlos Lacerda, maior adversário político de Getúlio Vargas, próximo à residência do então presidente da república. Ela é rápida, remetente a estetas do cinema contemporâneo como Michael Mann (Inimigos Públicos) e James Gray (Os Donos da Noite) e salientada pela excelência da direção de fotografia de Walter Carvalho. Assim, com esta evidente abordagem João Jardim sacramenta a formalização narrativa ante um possível tributo feito aos moldes de um épico ou de um drama histórico.


A escolha de filmar um thriller suspendido pelos conflitos políticos que culminam no suicídio de Getúlio Vargas e a desconstrução da persona de um homem solitário cria uma bifurcação no filme. Passado por boa parte dentro do Palácio do Catete, a sensação de claustrofobia aumenta; Getúlio, mesmo ao redor de tantos assessores e seguranças, está só. Não há em Getúlio Vargas a ideia em quem confiar. 


Há uma quantidade considerável de cenas onde João Jardim coloca em cheque a posição da câmera pois o que vemos são momentos de extrema intimidade daquele homem e a sensação é de invasão, de quebra e intromissão à história. A posição do político de viver como um homem solitário e de comportamento suicida em até certo ponto acanhado, em poucos momentos caminha ao lado do filme em si, do thriller que domina boa parte da duração de Getúlio.


Nesta grande parte, João Jardim desenha um filme em crescendo. A partir do atentado, Getúlio Vargas vai além de premissas ideológicas do povo e rompe o limite da cartilha política e vira vilão através de jogadas midiáticas de Lacerda. Não se trata de uma questão e sim de constatação. A mesma câmera que rompeu a solidão afirma a verdade ou o lado que seu público deve interagir de forma afetiva, ainda que não fique tão claro isto, já que a sensação é como fora dito antes, de intromissão.


Mesmo com a ausência de harmonia entre as duas colunas concebidas por um ato político nunca julgado pelo diretor – apenas seus expoentes -, a rivalidade é entreposta às saídas pessoais de Vargas. Sua preocupação flutuava entre o orgulho político e a integridade física. E sua carta de despedida parece como o ponto de partida para associação ou a absorção total de seu caráter sem qualquer tipo de julgamento, pois João Jardim nos lembra a cada plano que se trata de cinema. 

Getúlio (Idem, Brasil, 2014) de João Jardim

Lançamentos em VOD

O mercado em Video on Demand no Brasil não para de crescer. Por outro lado, as locadoras decretam falência. É o fim de um tempo de troca de ideias frente ao balcão, sugestão de filmes, diretores e informações principalmente de amizades. Inicia-se o tempo de compras/downloads de filmes de forma oficial. Sendo assim, vamos a eles.

 
Bad Milo (Idem, Jacob Vaughn, 2013) 
 
Como ponto de partida de Bad Milo está a melhor (talvez única) representação cinematográfica da reação do sistema gastrointestinal ao stress de uma vida baseada em resultados e traumas.  Bad Milo tem o hibridismo de Basket Case de Frank Hennenloter e a justificativa tensionada ao humor do cinema de gênero como suporte para a violência, tantas vezes visitada em filmes como Peeping Tom e Re-Animator

Dark Horse (Idem, EUA, 2011) de Todd Solondz
Para variar, chegando com muito atraso no Brasil. 
Crítica completa aqui

 Veronica Mars (Idem, EUA, 2014) de Rob Thomas

Exibido entre 2004 e 2007, a série homônima criada por Rob Thomas coloca em sua versão longa-metragem apenas a leveza de continuar o formato consagrado e a ironia com os sete anos que separam a série e o filme. Rob Thomas parece à vontade para adaptar seus personagens ao tempo de Twitter, Facebook e tablets enquanto usa esta alavanca para, com controle  exigido por qualquer filme feito para a TV, representar um gênero. 
  
 Vida de Adulto (Adult World, EUA, 2013) de Scott Coffey
  
Vida de Adulto é por excelência um filme de relações. Com a vida em primeira instância, ainda que a busca por afirmação da protagonista ganhe mais atenção. Exemplar das comédias independentes americanas adotadas pelo festival de Sundance, o filme tem a frustração como norte da trama, abordada através de núcleos - pais, emprego, amigos, etc. Esta separação paralela aos conflitos comuns da recém-chegada vida adulta adormecem os eixos mais simples do filme, resultando em uma experiência genérica.


Ashley (Idem, EUA, 2013) de Dean Ronalds

Tentativa desarmoniosa de traçar o cotidiano de uma garota amedrontada pelos traumas de infância. Não há um simples núcleo que funcione aqui. Do roteiro ao elenco, nada encaixa e a impressão é que Ashley é um pastiche dos mais ousados dos últimos anos. Ou o pior filme que vi em muito tempo. 

Apagar Histórico (Clear History, EUA, 2013) de Greg Mottola

Por se tratar de um filme feito para TV, Apagar Histórico mostra Greg Mottola contido e sem a astúcia de Superbad e Paul. Fica claro em poucos minutos de filme que a intenção é produzir uma versão estendida de um episódio de qualquer seriado cômico no qual Larry David passou. O senso crítico de Apagar Histórico está diluído em personagens anêmicos e tão caricatos a ponto de criar dúvidas da postura de Mottola ao próprio filme.


O Perigo Vem do Lago (Beneath, EUA, 2013) de Larry Fessenden

O retorno à direção de Larry Fessenden após Colapso no Ártico reúne elementos básicos  do slasher com filmes de monstro, aqui representado por um peixe assassino que serve de mutação da figura do assassino e a redução do espaço de ação. E O Perigo Vem do Lago investiga o respeito dessa fronteira de espaços - lago e barco -, claro, na base da violência. E com ela Fessenden faz sequências belíssimas e de extrema coragem, sem medo do velho debate envolvendo efeitos especiais em filmes de baixo orçamento. Por outro lado, a velha história de um grupo de adolescentes insuportáveis e perdidos não ganha a tradicional carga de humor que serve como escape para tamanha canastrice. 

TOM NA FAZENDA



Longe da histeria e da etiqueta que seu nome carregou nos últimos anos em festivais no qual havia passado em branco até então, Xavier Dolan, enfim, fez cinema. Tom na Fazenda se configura como um mergulho simples e dinâmico à narrativa e ao gênero sem grandes afetações estéticas e muito mais concentrado nos eixos da obra ao contrário de seus outros filmes, muito mais norteado pela construção de ícones e elementos extracampo. 


No thriller baseado na peça homônima de Michel Marc Bouchard – algo que explica a rédea vista em Tom na Fazenda - as referências são menos argilosas e funcionais. Hitchcock é constantemente lembrado e Gosto de Sangue de Joel e Ethan Coen é um dos títulos que vem à mente pela maneira que Dolan coloca o lado trágico da trama e pelo jogo de sombras. O filme é composto por extremidades e se torna hipnótico pela forma que Dolan insere os planos, sempre exageradamente abertos ou fechados. Eles acentuam a intenção do filme e mostram que a simplicidade no cinema é arrebatadora. 


O filme narra os dias angustiantes de Tom (Xavier Dolan) vividos na fazenda onde a família de Guillaume, seu ex-namorado recentemente falecido mora. Decidido a esconder da mãe a opção sexual do irmão, Francis (Pierre Yves-Cardinal) costura um jogo de gato e rato com Tom. À primeira vista o discurso de Dolan parece redundante a respeito da identidade sexual e o preconceito latente. Porém, com o desenvolver do filme, vemos que a ideia é mais complexa. Em outro plano, a iminência se torna a maior armadilha para o filme, sem grandes opções de desenvolvimento ou de surpresas. 

Curiosamente, quando Dolan sai da zona de conforto - ou de um fashionismo inexplicável -, ele foi premiado pelos críticos no Festival de Veneza. E não há como discordar da formalidade que o jovem canadense apresenta personagens cínicos e perigosos; Tom na Fazenda significa um novo tempo em sua carreira, enquanto revisita os bons tempos de um gênero e brinca com a ilusão de uma obra orgânica, que muda até mesmo a sua janela de exibição e declara sua artificialidade. 

Tom na Fazenda (Tom à la ferme, Canadá/França, 2013) de Xavier Dolan

É Tudo Verdade 2014

Comentários sobre os filmes vistos no É Tudo Verdade 2014.

 O Homem Que é Alto é Feliz? (Is The Man Who Is Tall Happy?, França/EUA, 2013) de Michel Gondry

Os encontros de Michel Gondry e Noam Chomsky dão margem para cada um estabelecer ápices e limites. Gondry em processo de finalização de um blockbuster, mais interessado em respostas e Chomsky disposto a criar retóricas em teses filosóficas sobre a vida e se fecha enquanto pode. Se Chomsky domina o áudio em todos os sentidos, Gondry exibe sua máxima através de desenhos feitos à mão para ilustrar a conversa e usa a força do corte para se expressar. Se há algum ponto de convergência - ou que se aproxima de uma narrativa - para o cinema é a tentativa de Gondry em analisar o homem e não o filósofo Chomsky.

Homem Comum (Idem, Brasil, 2014) de Carlos Nader 

Corajosa dialética de questões fundamentais para o sentido da vida em função da montagem. Carlos Nader mescla a questão do real, do corte, da encenação e o jogo entre passado/futuro enquanto acompanha por vinte anos a vida do caminhoneiro Nilsão. Nader encontra a formalidade entre tantas opções e metáforas de vida e morte utilizando A Palavra de Carl Dreyer como uma certeza e o que exibe é  insegurança em resposta ao seu protagonista, este que sempre foi tão seguro do material que Nader gravara. 

A Família de Elizabeth Teixeira (Idem, Brasil, 2014) de Eduardo Coutinho
 
Feito para o material extra do DVD de Cabra Marcado Para Morrer, o filme exibe Coutinho despreocupado em relação ao controle que a câmera tem em seus filmes - talvez por saber o peso que seu filme guarda. Ainda que os tradicionais planos americanos e a presença do diretor em contra-plano compõem boa parte do filme, Coutinho é mais presente, conversa despreocupadamente até, enfim, dar o golpe que os entrevistados aguardam. Poucos conseguem fazer algo assim sem construir um arco dramático ao redor das questões principais. E após as perguntas-chave, o que vemos é um conjunto de traumas, remorsos e boas lembranças que de certa forma espelham a importância de Cabra em um contexto histórico.  

Sobreviventes da Galiléia (Idem, Brasil, 2014) de Eduardo Coutinho
 
Como em A Família de Elizabeth Teixeira, Coutinho volta à Cabra Marcado Para Morrer no reencontro com Cícero e João José. Coutinho dá detalhes da produção do filme (reportagem, segundo Coutinho) em tom nostálgico, transparecendo um carinho especial pela obra. Novamente despreocupado com o resultado e intencionado a criar um ambiente de ternura entre ele e os personagens, Coutinho dá força descomunal pelo tom de despedida das conversas. Pensar na circunstância que Coutinho se foi pesa ainda mais.

Alegria do Homem Que Espera (Que ta joie demeure, Canadá, 2014) de Denis Côté

Interessante espiral construída por Côté para sinalizar o trabalho como ato e necessidade. No entorno Côté faz intervenção dramática onde os contras do trabalho são analisados da mesma forma que seus filmes ficcionais como Vic+Flo Viram Um Urso e Curling. No núcleo, a rotina de trabalhadores de fábricas onde a repetição e a morte do humanismo tantas vezes pautadas no cinema traduzem um registro nada romântico sobre o capitalismo.

CORTINAS FECHADAS

Da impossibilidade de trabalhar, Jafar Panahi faz em caráter marginal um filme sobre a angústia de subsistir e o processo criativo de um cineasta em cárcere. De cunho teatral, também usado em seu filme anterior Isto Não É Um Filme, Panahi usa dois personagens (des)motivados pelo terror ao redor.  Fugitivos por motivos abstratos – fora a presença de um cachorro, animal de criação proibida pelo Islamismo -, ambos estão em constante estado de alerta e preservação.


A ilusão que cortinas fechadas protegem é a catapulta que Panahi utiliza para assim, sinalizar a angústia do processo de escrita e o monstro que o mundo externo tornou-se para o diretor. E levado ao seu extremo, Panahi toma o filme para si, escancara um discurso escondido nos diálogos. Derruba as cortinas, quebras as janelas e exibe enfim, sua posição. Interpretado pelo co-diretor e amigo Kambuzia Partov que por vez passa pela mutação óbvia da co-direção e do real autor, o responsável por escrever um roteiro e que passa por crises. De fora para dentro. Pode tanto destruir seu passado como o futuro – a opressão que transforma em autoboicote.


Portanto, Cortinas Fechadas serve mais como um novo desabafo. Um novo tour de force corajoso para exibir o terror sem que o próprio seja despertado. Pois para Panahi o estopim é móvel e intenso como as ondas do mar. Estas que impedem que ele se esqueça de sua prisão.

Cortinas Fechadas (Pardé, Irã, 2013) de Jafar Panahi e Kambuzia Partov

Um Episódio na Vida de Um Catador de Ferro-Velho (Danis Tanovic, 2013)


No limite entre o documental e a ficção, Um Episódio Na Vida de Um Catador de Ferro-Velho pulveriza a esperança do que é chamado de pós-moderno ao acompanhar a via crucis de Nazif, homem que renuncia suas vontades e necessidades para atender uma emergência médica da mulher e contornar as exigências das filhas. 

Um Episódio Na Vida de Um Catador de Ferro-Velho em primeiro lugar coloca a questão da representatividade da rotina no cinema de Danis Tanovic, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro por Terra de Ninguém em 2002. Vemos sua funcionalidade em um filme sem eixos e tão áspero quanto a realidade. Tanovic logo constata que a tendência em vivermos em comunidades e afastarmos nosso olhar do próximo ainda é atual. 

Esta é a proposta de Tanovic para trazer o efeito poético no sofrimento, este que poderia ser retratado em qualquer lugar do mundo. O filme projeta o mal estar e faz questão de se esvaziar na trivialidade para refletir o vazio de um local abandonado pelas autoridades.

O encaminhamento retórico que o filme possui principalmente traz às questões sociais e o cunho histórico de um país assolado por eventos trágicos como a Bosnia-Herzegovina. Esta é a raiz da história. Portanto é comum que Um Episódio Na Vida de Um Catador de Ferro-Velho se assimile aos trabalhos de diretores como Alexey Balabanov, Elem Klimov e as recentes visitas de Sergei Lonitza à ficção por equivaler o pessimismo na composição de planos. Neles notamos que toda atenção dada à rotina sinaliza que até no menor dos atos, Tanovic guarda simbolismos  históricos pertinentes. 

Um Episódio Na Vida de Um Catador de Ferro-Velho (Epizoda U Zivotu Beraca Zeljeza, Bosnia-Herzegovina/França/Eslovênia/Itália, 2013) de Danis Tanovic


Paixão e Virtude (Ricardo Miranda, 2014)

 

Há muito a dizer sobre Paixão e Virtude, mas para sintetizar o impacto que a obra de Ricardo Miranda traz após a notícia de sua morte na última semana é necessário ampliar a ótica sobre o curso da carreira daquele que montou filmes de mestres como Ivan Cardoso, Glauber Rocha e Paulo Cesar Saraceni e dirigiu Assim Na Tela Como no Céu e Djalioh. Portanto será necessário um tempo maior de digestão e exclusão do filme da cobertura de luto e consideração. E o que pode-se comentar sobre o longa por enquanto...

Da mesma maneira que Djalioh (2012), Paixão e Virtude faria parte de uma trilogia e tem Flaubert como base. Nesta linha o que vemos é um respeito crível à literatura (linguagem), teatro (espaço e performance) e o cinema como ato contínuo, uma necessidade de expressão garantida pela evolução de uma espécie necessitada de inexatidão. Miranda questiona esta evolução em fina ironia, evitando problematizações acerca da moral pois os personagens se entregarão a cada quadro - metaforica ou literalmente, dependendo da motivação de Miranda. A matéria é o mesmo humano que escraviza e moraliza até pensamentos e não se inibe ao colidir com impulsos. 

Miranda deu ao narrador o papel de termômetro instintivo. É a forma clássica de se desenvolver uma história em conflito com a liberdade da imagem e a força de um embate de performances que não seguem o texto à risca. Toda riqueza oriunda desta parabólica acompanha o controle de Miranda sobre as motivações de um devorador de autores e artistas. Desta relação entre diretor e obra a força do filme duplica e toma forças ainda maiores com os últimos acontecimentos. Eis uma declaração de amor à inconstância e contradições humanas que permitem declarações angustiantes e cínicas acima de qualquer consideração. Diagnósticos tampouco. O que se celebra em Paixão e Virtude é a vida, ainda que a tela insista em abordar a morte. 

Paixão e Virtude (Idem, Brasil, 2014) de Ricardo Miranda

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