BR 716 (Domingos Oliveira, 2016)


BR 716 abre com a equipe do filme preocupada com um take feito na praia, com parte do elenco reunido, enquanto Domingos Oliveira caminha lentamente, contemplativo. Uma imagem capaz de resumir o filme: Domingos, ainda que distante, é visível e pronto para se entregar mais uma vez.

No início dos anos 2000, quando Domingos Oliveira descobriu o cinema digital, pôde enfim voltar à produção ferrenha de filmes. E, depois disso, cada novo filme parece ser o último. Uma celebração, lamentação, despedida ou reclamação geral. Cada um com suas particularidades. A fixação com a morte, assim como Woody Allen, grande inspiração de Domingos, está em cada fresta de seus filmes desde então e amplificada na deliciosa autobiografia Minha Vida, lançada em 2014.

Em BR 716, Domingos foge do método usado nos filmes de cinema digital, com obras inclinadas à comédia dentro de sua verborragia, tendenciosas em relação às conclusões e uma moral acerca da vida. Seu novo filme é verborrágico, claro, mas preocupado com a construção de uma atmosfera. Era o tempo da boemia de Domingos, que não permite que BR 716 seja explícito em afirmar que se trate de um filme sobre si. Caio Blat, que vive Felipe, protagonista, é Domingos até o último fio de cabelo, mas vive conflitos mais tortuosos que Domingos nos tempos de roteirização de A Culpa (1971). 

Esses conflitos se refletem em um filme claustrofóbico com ajuda das paredes do apartamento da Barata Ribeiro 716, com um interesse muito maior em se fazer cinema e não um teatro informal como seus últimos filmes foram (com exceção de Infância). Trata-se de um filme de entregas em um ambiente muito próximo aos baluartes da Nouvelle Vague - ainda que seja um filme de estúdio -, das relações interpessoais ou com o que há em volta, do golpe às contas no botequim. BR 716 guarda nostalgia em cada quadro e a constatação de que tudo pode se encaixar, mesmo que o drama sinalize o fim, ironicamente quando Felipe ainda estava no início. É, portanto, uma celebração à juventude, que Domingos tanto revisita. 

Um filme de mulheres, álcool, arte, festas e política como a espinha dorsal do longa, combinação que o cinema francês imortalizou tantas vezes. Esse é o diferencial de BR 716, pois o tributo sobrepõe à palavra neste caso. É de uma beleza estonteante ainda que o que é dito também esteja sempre parelho ao que se vê. Mais um filme de despedida, mas dessa vez não do homem ao mundo e sim do homem ao tempo. É um filme de saudades mesmo para quem não faça ideia do que foi vivido.

Texto originalmente publicado no Cineplayers.


O Nascimento de uma Nação (Nate Parker, 2016)



Via Crucis no Primeiro Testamento

O título, apesar da ligação direta, é uma provocação; o filme homônimo de D.W. Griffith de 1915 é baseado em "The Clansman: An Historical Romance of the Ku Klux Klan" de Thomas Dixon Jr. O filme de Nate Parker, não. É resumidamente uma gigantesca falha em impor o ponto de vista sobre o material. E para encerrar qualquer tipo de comparação entre os dois filmes, vamos a mais importante delas: o filme de Griffith, ainda com suas brechas às questões sobre ser um manifesto racista, é distante de seus personagens, sem intenções maniqueístas sobre eles e mais interessado em fazer um registro histórico. Já as intenções de Parker são básicas como peças de marketing e não como plausível resistência.

O Nascimento de uma Nação do ator e agora diretor Nate Parker se passa no início do século XIX e acompanha o escravo Nat Turner e suas relações dicotômicas com absolutamente tudo que há ao seu redor. Esta é a única base do filme. E dela Parker faz o que pode com os maneirismos e olhar retido do melodrama, sem inspiração entre tantos blocos de plano/contra-plano/plano geral. Para Nat Turner, o mundo é mínimo e suficiente para refletir a hipocrisia em cada fresta de tempo e silêncio com a cínica intenção de reverberar o presente. 

Da relação com os patrões, talvez o ponto mais interessante do filme por ser o mais adormecido por Parker, à interpretação da palavra de Deus, Nat é como Cristo no tempo de guerra e ira. Nat é testemunha e vítima do mal diariamente, ainda que ele possua diversas facetas e em certos momentos seja difícil de identifica-los. E se O Nascimento de uma Nação é a representação geral do evangelho, o filme também serve como a compreensão ideológica da religião e da retribuição violenta como partes que se completam. 

Ao contrário da posição de  um Cristo de ágape, Nate Parker circula Nat com seu ego. O Nascimento de Uma Nação é o que se espera de um "rebelde hollywoodiano" e que levanta naturalmente a questão sobre o que é, afinal, o filme. Sobre Parker ou sobre Turner. Até o filme se encontrar com  a rápida perspectiva sobre o embrião da milícia negra como resposta à opressão, o que se vê é uma teorização básica e rasa sobre as saídas e o sofrimento - ainda que toda sua ação seja reforçada pela fé. Portanto, Cristo está, de verdade, enfim, no sangue e entranhas das minorias. Partindo desse olhar, o filme de Parker é um chute certeiro na cabeça de um defunto, pois não é feito para provocar e afirma o que é óbvio. 

*texto originalmente publicado no Cineplayers.

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