OS AMANTES PASSAGEIROS




Pedro Almodóvar não faz acepção de gêneros. Ambivalente em segmentos ou obedecendo a regras à risca, em sua filmografia é possível identificar motivações para seguir estruturas exigidas como desafio. Em Os Amantes Passageiros, Almodóvar traz a percepção sobre o momento de crise na Espanha transpassada com bom humor e liberdade através da tripulação e passageiros que viajam ao México. Do batismo nada sútil de “Península”, Cia aérea que oprime e inibe classes distintas à forma de apresentação de personagens – que nada mais faz que criticar a cultura de celebridades e escândalos (que explica a participação de Antonio Banderas e Penélope Cruz), o diretor parece preocupado em manter a aura de filme “menor”, mas sempre corajoso. 


Envernizado por todo folclore que envolve o nome de Almodóvar, neste caso, em tom maior, a direção de arte e figurinos, o filme se justifica por argumentos frágeis. Neles há o cunho anárquico e despretensioso - em estrutura, inclusive – para banalizar em diversos tópicos alguns motivos que transparecem a crise espanhola.


Os Amantes Passageiros é na superfície uma comédia de costumes preso ao deboche direto aos paradigmas da imaginação popular sobre o próprio país. Desta forma é comum a associação do discurso à narrativa, principalmente na forma que o diálogo com a audiência é dado, pois toda verdade exposta não é suficiente para engessar o intuito do diretor. Pois se Almodóvar encontrou saídas para entreter o público familiarizado com escracho e a sensação vermos um pastiche, todo o lado ilustrativo parece gratuito e de fácil associação, contrário à cartilha que consagrou Almodóvar. 


Porém, tudo o que está na superfície instiga que Os Amantes Passageiros perdure além de seus 90 minutos. O “gratuito”, então, toma o incômodo ao seu favor, pois da leveza e despretensão, Almodóvar sugere e encoraja o público a imergir em campo desconhecido por boa parte de sua audiência cativa. Só o tempo dirá, mas é provavél que o filme mereça revisões e reconsiderações sobre sua reputação.
★★


 ★★★
Os Amantes Passageiros (Los Amantes Pasajeros, Espanha, 2012) de Pedro Almodóvar

A ESPUMA DOS DIAS




Ao condensar o processo de produção do livro A Espuma dos Dias de Boris Vian à adaptação cinematográfica propriamente dita, Michel Gondry subverte seus métodos; o tradicional e folclórico papel da estética toma as rédeas da história, outrora coadjuvante em filmes como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e Rebobine, Por Favor.


Ambivalente, o longa une com sobriedade esta espécie de onirismo obrigatório, seja pela obra original – de natureza psicodélica – ou pela influência de Michel Gondry. A Espuma dos Dias exibe um conto primordialmente ilustrativo com o intuito de se opor às regras de composição. Porém, falta lucidez no uso das imagens aliadas à tipologia que a narrativa sugere.


Apesar de seguir uma história de amor, A Espuma dos Dias é um filme romântico por outros meios; trata-se de uma escolha acertada para evitar diatribes acerca do sistema capitalista e tópicos políticos, já que o filme é repleto de informações visuais. De forma sensível, Gondry pauta assuntos infiltrados no filme, que logo se mostra como um espetáculo – os familiarizados ao cinema de Gondry compreenderão que nada passa de fetiche – e nele segue até o fim. 


Pois depois do trágico Besouro Verde e o mais corajoso de seus filmes, o ainda inédito no país Nós e Eu, Gondry ensaia o retorno ao mundo que o consagrou, desta vez usando a história a favor da imagem. Configura-se, portanto, uma obra figurativa, que se justifica por caminhos que geram afirmações frontais de Gondry à marca de autor. Desta forma, é visível a eloquência do discurso de planos e movimentos de câmera; por outro lado está a saturação breve do diálogo com o próprio filme. Como diagnóstico, parece infinita a luta de Gondry para inibir a autonomia entre narrativa e estética, independente de enredos.

 ★★
A Espuma dos Dias (L'Écume des Jours, França/Bélgica, 2013) de Michel Gondry

FERRUGEM E OSSO




Cercados pelo visual paradisíaco do litoral do sul da França estão Alain (Matthias Schoenaerts) e Stéphanie (Marion Cotillard). À sua maneira, cada um trabalha para que outros possam se divertir. Estão à beira do abismo e o dinheiro parece motivo para subsistir, independente da procedência do pagamento. A partir deste olhar pessimista, Ferrugem e Osso aos poucos transparece a zona de conforto que muitos hoje buscam; estabilidade financeira e nenhum envolvimento emocional.

Alain caminha por extremos, seja em relação à família ou vida profissional. Stéphanie tem a inércia como defesa. Cercados pelo medo em realidades distintas e ao mesmo tempo tão similares, a relação entre eles mostra tal dicotomia pela sobriedade de Jacques Audiard (O Profeta) na direção. Stéphanie e Alain não formam um casal, não se abrem o bastante para construir uma amizade, porém o silêncio ou palavras gratuitas escondem o afeto entre os dois. 

Pois se Ferrugem e Osso é à primeira vista um filme sobre a dor e o objetivo de ter antes de ser, Audiard o transforma em bomba-relógio, imageticamente representada pela bela sequência onde sangue e gelo tomam as rédeas da vida de Alain. Nela é transparecida o que a narrativa se arrasta para conquistar – o flerte com gêneros e a transparência de toda contradição vivida pelos dois. 

Portanto  não estamos à frente de um filme sobre condições. Ferrugem e Osso é a constatação de um tempo obscuro para relações humanas, completamente dominadas pelo dinheiro e pela tecnologia.  Através de mensagens Stéphanie e Alain se comunicam para preencher o vazio que o estilo de vida dos dois – repito, cada um à sua maneira – impõe. O mesmo pode ser dito pelo caminho escolhido por  Audiard, constantemente em busca de argumentos para preencher o óbvio.

★★★
Ferrugem e Osso (De Rouille Et D'Os, França/Bélgica, 2012) de Jacques Audiard

A BELA QUE DORME



O governo oprime, a igreja doutrina, a consciência pesa. Em muitas camadas, Marco Bellocchio pauta o que ronda tabus da sociedade através da eutanásia. Em A Bela que Dorme não há mudanças de ótica com intuito de condensar nuances melodramáticos. Pelo contrário, o que se vê é tão instável quanto a vida. Bellocchio aponta para motivações, traumas, medos e claro, esperança.


Como o sofrimento que situações como essa trazem, não há necessidade de discussão sobre certo ou errado; elas são coisas da vida. Assim, Bellocchio vai direto ao âmago; Quem mais poderia abandonar sua vida pela esperança senão uma mãe apaixonada? Quem mais luta contra si mesmo quando há pressão dos “bons costumes” e da burocracia que envolve a relação entre governo e vaticano senão um homem traumatizado? Declarar-se derrotado é crime em uma sociedade cristã? Ir de encontro ao senso, acender o pavio esquecido. Este é o dever, segundo Bellocchio, desta vez longe de sua beleza estética habitual.


Rico em representações dos pilares que cercam esta discussão, A Bela Que Dormeé um filme cuidadoso principalmente em julgamentos. Portanto, não é conveniente esperar dedicação ao passado de cada personagem – ou construções pertinentes a eles. O que interessa na discussão é a liberdade em abreviar ou não uma vida.  Em harmonia inteligível, Bellocchio passa por locações conforme uma turnê turística. Reconhece e apresenta um país e seu estado de crise. Estamos diante do panorama do que se viu nos últimos anos através da mídia sob o estatuto comum da imagem. E com é com a imagem que Bellocchio trama o embate principal, pois estamos diante de corpos e não de almas. 

★★★
A Bela Que Dorme (Bella Addormentata, Itália/França, 2012) de Marco Bellocchio

O LUGAR ONDE TUDO TERMINA



Em forma, tudo em O Lugar onde Tudo Termina pode parecer diferente. Porém, o que se entende ao acender das luzes são a relação comum do berço da corrupção e sua manutenção ao longo dos anos. Derek Cianfrance, diretor do ótimo Namorados Para Sempre segue a rotina do motoqueiro bad ass Luke, vivido por Ryan Gosling. O ator remete a papéis que lhe deram a fama – David Markes de Entre Segredos e Mentiras ou o driver, de Drive. Os bad boys, enfim. Do plano-sequência que abre o filme ao exibicionismo que coloca o motoqueiro no literal globo da morte, Cianfrance claramente busca a aura de seu discurso, posteriormente revelado. Luke nos é apresentado como uma espécie de gladiador da instituição familiar apesar do julgamento que sua aparência pode trazer.

Mas no intuito de O Lugar Onde Tudo Termina, algumas regras podem ser quebradas, inclusive as da narrativa clássica, e isto não significa uma boa idéia. O batido mosaico de relações se instala e a moral é imposta explicitamente, aqui norteada pelo papel de Avery (Bradley Cooper), policial que ilustra o lado mutante da integridade frente à corrupção. O filme que era um conto da mesma intensidade que Namorados Para Sempre toma um novo rumo e, ironicamente, não sabe para onde vai. Pois ao acompanhar diversas rotinas encadeadas por uma tragédia, o filme se torna uma longa e repetitiva fuga da mesmice, mas sem sucesso.

A idéia de ciclo e a imagem abstrata do vilão naturalmente esquecem a desintegração familiar – o mais interessante pilar narrativo - para desembocar num conto moral raso e previsível. O abismo moral usado por Cianfrance destoa completamente do ritmo de seus longos 142 minutos de filme. Porém, o clima soturno que envolve este mundo sinalizado pelos pinheiros de uma estrada bucólica está presente, tão pungente quanto à institucionalização do mal-estar perante os olhos do que chamamos de “justiça”. Um dos poucos acertos do filme.

O Lugar Onde Tudo Termina (The Place Beyond the Pines, EUA, 2013) de Derek Cianfrance

A MEMÓRIA QUE ME CONTAM




Lúcia Murat não está apenas na figura da cineasta Irene (Irene Ravache) em A Memória que me Contam. Ela está em espalhada pelos personagens que definem o encontro de gerações e o reflexo da ditadura no Brasil. O filme aos poucos se configura como exposição simples e extremamente confidencial. Nele a linha narrativa aos poucos perde cor e o que ganha destaque é o tom confessional.


A partir da Comissão da Verdade e de uma sala de espera de hospital, Murat revira um baú de memórias. Passando por Rio de Janeiro, Brasília e Paris, vemos mais vontade que ambição – ou seja, muito mais tributo que história. Em A Memória que me Contam, Ana (Simone Spoladore) é o elo para tempos distantes. Inquieta e saudável na época da ditadura militar e à beira da morte no leito do hospital hoje, ela une a amizade e união de um grupo que lutou por um ideal. Por outro lado, é a o pavio para discussões calorosas sobre o passado e constatações pessimistas sobre o futuro. 


E o pessimismo ronda tudo que parece estrangeiro, desordeiro dos bons costumes. Todos, por um motivo ou outro são marginais indo e vindo pelas ruas, parados em frente à polícia, participando de debates e fazendo arte. Sim, arte. Nela, Murat acha o caminho para a justiça, mesmo que ela paire pelo mundo onírico, o mesmo que aproxima a paz – feita da mesma ilusão do sorriso de uma criança. Elas crescerão e serão novas vítimas ou ameaças. 


Mesmo que A Memória que me Contamnão seja idílico inclusive em nostalgia, o que testemunhamos é um discurso sincero, ansioso e ofegante sobre definições. Sobre viver sob escombros e processos. Narrativa neste caso é mera justificativa. Mesmo atrás das câmeras, a presença de Lúcia Murat é latente. 

★★★
 ★★★
A Memória Que Me Contam (Idem, Brasil, 2012) de Lúcia Murat
★★★
★★★
★★★
★★★

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