INVERNO DA ALMA

debra granik

A incessante busca da personagem vivida com excelência por Jennifer Lawrence (coroada com uma indicação ao Oscar na última terça-feira) por seu pai é uma redenção mítica e silenciosa junto ao autoconhecimento por trás de tamanha segurança exposta após uma brusca mudança no curso de sua vida. Questionamentos sobre o valor da dignidade e de diferentes formas de submissão estão presentes no desenvolvimento narrativo de Inverno da Alma.

A profundidade do subtexto existencialista é bruta. Os personagens são complexos – possuem defeitos e qualidades suficientes para deixar que o espectador decida o que parece ser conveniente para a protagonista e para qual caminho seguir. Mas Debra Granik lembra que o comando é dela.

A diretora está segura na lapidação do roteiro baseado na obra de Daniel Woodrell, dando informações complementares à história no momento exato, e também se distância de seus personagens optando por analisá-los fria e densamente. Um grande acerto.

Inverno da Alma (Winter's Bone, EUA, 2010) de Debra Granik

UM LUGAR QUALQUER


Imagine uma tela branca. Imaginou? Ok. Agora imagine Sofia Coppola, com um pincel e tinta, fazendo vários traços coloridos e aleatórios pela tela. No espaço em branco, ela resolve contar a história de um ator em decadência emocional e ascensão profissional, que tem sua rotina autodestrutiva interrompida pela presença da filha de onze anos. Poderíamos batizar esta obra de Hollywood ou Fazendo um Filme com os Amigos (só assim pra justificar o prêmio em Veneza), mas a diretora preferiu batizá-lo de Um Lugar Qualquer.

Coppola acerta bem no alvo. Sabe exatamente com quem ela cria diálogos. Com um público que se agradará ao assistir a versão italiana de Friends, ouvir um remix lounge de uma canção superestimada dos Strokes ou até mesmo invejar a camiseta da Sub Pop do protagonista. Um nicho específico,  que claramente divide do mesmo gosto e personalidade que os amigos da diretora. Um Lugar Qualquer é um esboço de história, talvez para fazer o paralelo com o vazio que a classe vive na rotina entre regalias e obrigações profissionais.

O uso da câmera estática com lentos movimentos de zoom reforça tal idéia, que é coroada pelo silêncio do protagonista Johnny Marco (vivido por Stephen Dorff). O choque interior com a mudança da rotina e da forma de se enxergar o mundo calham numa sutileza maior que a diretora procurou por todo seu filme. Consegue emocionar. Por acidente, mas consegue.

 
Um Lugar Qualquer (Somewhere, EUA, 2010) de Sofia Coppola

BIUTIFUL


Em seu primeiro trabalho sem a parceria com Guillermo Ariaga como roteirista, Alejandro González Iñárritu entrega um trabalho que transcende qualquer intenção imagética ou subterfúgio estilístico. Biutiful é uma espécie de epopéia autobiográfica (que fica mais evidente ao longo do filme) que segue no caminho oposto de tudo que já fez em aspectos narrativos. Sem fragmentações – e mesmo assim bastante engajado -, Iñárritu traz para a atualidade e acoplando a atemporalidade um roteiro restrito, bastante particular.

A sempre inquieta câmera de Iñárritu acompanha Uxbal (Javier Bardem em atuação impecável) após o descobrimento da posse de poucos dias de vida por conta de um câncer na próstata. A partir de uma relação abstrata com a morte e o eixo caótico de uma Barcelona encardida, claustrofóbica e inquieta que aspira vícios, doenças, preconceitos e relações quase inconcebíveis, Uxbal demonstra viver numa dicotomia constante.

Entre a fraqueza de seu corpo e a mente poderosa de um homem que cuida de negócios ilegais, está a instabilidade emocional referente aos filhos e a esposa. O grande porém de Biutiful está na composição deste estado. Sem Arriaga, o diretor parece perdido, mais interessado em criar complexos visuais e acidentalmente iguais aos de O Assassino Sentimental de Máquinas do conterrâneo Omar Rodriguez-Lopez. Esta aposta vai de encontro com o oposto de sua narrativa, mais intimista, implícita para contar a agonia de um homem e sua já saudosa relação com a família.

Biutiful (Idem, Espanha/México, 2010) de Alejandro González Iñárritu

TIO BOONMEE QUE PODE RECORDAR SUAS VIDAS PASSADAS

Apichatpong Weerasethakul

Para quem conhece Mal dos Trópicos e Síndromes e um Século, principais obras de Apichatpong Weerasethakul, sabe a importância que o diretor dá a relação homem/natureza/espiritualidade. Tio Boonmee volta à analise onírica, desta vez de forma mais acessível. O filme, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, pauta a relação de uma família com a morte quando entes falecidos resolvem reaparecer para cuidar de Boonmee, que tem sérios problemas nos rins.

A viagem é menos hermética e mais abrangente que a da força da natureza de Mal dos Trópicos e da homenagem do diretor aos seus pais em Síndromes e um Século, mas ainda tem sabor de requentado ao unir os dois extremos destes filmes em Tio Boonmee. A crença do diretor mais uma vez é o pilar da história, que em menor quantidade dá abertura às múltiplas interpretações ao discutir a fragilidade humana.

O roteiro, sem originalidade, dá pano para a sempre impressionante plástica e os sempre belos planos elaborados pelo diretor, que na última sequência sai de seu conforto para investigar a causa mortis do mundo. Bonito, mas avulso em relação ao resto do filme, que consegue respirar graças aos instigantes personagens e a lírica construção de diversos paralelos espirituais e sociais.

Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Loong Boonmee raleuk chat, Thailanda/Inglaterra/França/Alemanha/Espanha/Holanda, 2010) de Apichatpong Weerasethakul

O MÁGICO


Muito se fala do resgate de uma linguagem particular, mas essa não é a palavra certa para definir O Mágico, homenagem de Sylvain Chomet ao falecido diretor Jacques Tati, que escreveu o roteiro original do filme. Chomet ordena seu espectador a brigar com sentidos mais inquietos. É preciso desligar-se de um mundo caótico, barulhento, ligeiro e muitas vezes dispensável. Referências à Tati estão por todo canto do filme, visuais ou não, apesar do diretor não perder em nenhum momento traços autorais.

Comprimida na proposta imaginária da elegância francesa, Chomet narra lentamente uma dúbia história de amor. Nela está o fracasso profissional, a decadência econômica, a amizade e a falsa ilusão de eternidade. As múltiplas possibilidades de interpretação casam ao objetivo de anular a gratuidade dos diálogos no cinema e alinhar o que Tati e Chaplin tinham de comum na forma de expressão.

Portanto, reverenciar um modelo, uma época praticamente perdida para o dinamismo que o mundo moderno pede é o que O Mágico faz. Onde se aproveita cada momento oferecido pelo acaso, pela  almejada liberdade, onde a paixão é consumida até o seu fim.
 
O Mágico (L'Illusioniste, Reino Unido/França, 2010) de Sylvain Chomet

ALÉM DA VIDA


À procura de quadros semelhantes às pinturas, como fazia o diretor italiano Michelangelo Antonioni, Além da Vida encoraja-se para tratar de um assunto delicado – a desconstrução da fé além dogmas - sem dilacerar a dicotomia do roteiro escrito por Peter Morgan (Maldito Futebol Clube), que tende em momentos chave da trama a cair em pieguices baratas. Comum, afinal trata-se de um tema onde a naturalidade pode ser confundida com pretensão.

Eastwood cria núcleos com personagens que tiveram relações distintas com o que chamamos “quase morte” e, sob diferentes perspectivas, a imersão melodramática e desconstrutiva do sobrenatural como epítome de uma trilogia. A experiência do diretor está na ousadia, explícita na incrível sequência de abertura do filme, no aspecto artesanal de ilustrar o contato com o “além” e a segura e contida direção, sem afetações visuais ou inserção de reviravoltas surpreendentes.

Além da Vida aborda o ceticismo que se apresenta como hostilidade pelo poder de grandes empresas, sem esquecer de que a fé é uma boa fonte de renda e que também pode destruir relações. Ignorando o subtexto por completo, encara-se a decisão de Eastwood como ousada, que se atenta à mensagem direta ao público, delimitando seu filme à definição.



Além da Vida (Hereafter, EUA/Reino Unido, 2010) de Clint Eastwood

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