O GAROTO DE LIVERPOOL


Longe de ser a cinebiografia definitiva de um dos maiores ídolos da música, O Garoto de Liverpool não ignora a importância do rock and roll para a vida e construção do caráter de John Lennon, mas tem foco em um período específico da vida do músico, para entendermos melhor como John transportava sentimentos em melodias e nas letras.

Em sua juventude, John foi exposto a disfuncionalidade de sua família, até então desconhecida e ofuscada por conta da presença de seu amado tio George. Ao mesmo tempo, o garoto conhecia o rock. Esta turbulenta época registrada pelas lentes de Sam Taylor Wood ganha uma potência absurda pelas atuações. Na mais simples sequência, é possível sentir que seu elenco parece cru o bastante para soar genuíno. Aaron Johnson mostra que pode viver a antítese do bobalhão vivido em Kick-Ass – Quebrando Tudo; Kristin Scott Thomas na pele da severa e protetora Mimi consegue explorar a dicotomica personalidade de sua personagem e parece domar a platéia a cada reação; Annie-Marie Duff poderia (ou deveria) ganhar indicações por melhor atriz coadjuvante como a “mãe” de Lennon.

Por esse período de descobertas e principalmente de escolhas, Taylor Wood ignora sensacionalismos e amarras em sua trama. No segundo ato fica bem claro que a intenção maior do diretor é deixar que o público crie as molduras de cada sequência, numa metáfora aos sentimentos e pensamentos do músico. Mesmo esbarrando em momentos rasos – e na insistência de mostrar toda insegurança de Lennon na pose de garoto malvado -, O Garoto de Liverpool rende cenas belas e arrasadoras enquanto apresenta o embrião dos Beatles.


O Garoto de Liverpool (Nowhere Boy, Reino Unido/Canadá, 2009) de Sam Taylor Wood

VOCÊ VAI CONHECER O HOMEM DOS SEUS SONHOS


Em perspectiva, o novo filme de Woody Allen parece uma releitura de Maridos e Esposas, aclamado filme do diretor nova-iorquino realizado em 1992. Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos celebra ironicamente o lado trágico das relações amorosas remetendo à época que o diretor usava as ruas de Manhattan como locações de seus filmes.

Com ajuda de elementos off-screen que o consagrou, Allen constrói um mosaico de situações contemporâneas – que ofuscam o choque do inusitado - para interligar personagens através de elementos tragicômicos ao contrário do drama de 92. Sem tropeços narrativos ou complexidades para representar diversas personalidades de seus personagens, o longa tem desenvolvimento fugaz e dinâmico. E lá estão todas as características que o diretor sustenta nos últimos anos, como o narrador, a presença de mágicos e videntes (O Escorpião de Jade e Scoop – O Grande Furo são alguns exemplos), a diferença de idade gritante entre os protagonistas (Tudo Pode Dar Certo) e o latente pessimismo que cerca toda a narrativa (O Sonho de Cassandra, Match Point).

Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos explora vias dicotômicas ao ser uma prazerosa comédia que se desenvolve muito bem com o conjunto de características que culminam no dito cinema autoral. Neste caso nada mais é o ato de identificar macetes da direção de Woody Allen, que não faz questão de se esquivar deste diagnóstico: desde os créditos iniciais até o fim do filme, nós sabemos exatamente o que vamos ver (e vemos há 45 anos) e saímos do cinema com a sensação de frescor, uma das grandes qualidades do cinema de Allen.

Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (You Will Meet a Tall Dark Stranger, EUA/Inglaterra/Espanha, 2010) de Woody Allen

MINHAS MÃES E MEU PAI


Assistir ao novo filme de Lisa Cholodenko (Arte e Amor) é uma constante no que diz respeito à identificação da intenção e pretensão. Ao desenvolver a história com personagens já moldados, estereotipados e levá-los a força à trivial humanização, a diretora tropeça muito mais nas pretensões.

São muitos clichês para serem adaptados ao retratar um casal homossexual bem sucedido que entram em crise ao conhecer o doador de sêmen de seus já crescidos filhos, estes que só acrescentam conflitos saturados ao roteiro de Minhas Mães e Meu Pai, mesmo representando o núcleo mais interessante da trama.

Agarrado a momentos de humor e na silenciosa e constante tensão sexual de seus personagens – realçada pelas ótimas atuações de Julianne Moore, Mark Ruffalo e Josh Hutscherson -, o desenvolvimento narrativo é funcional; entretém mesmo esbarrando nos almejos revolucionários (atrasados, convenhamos) da diretora.

Minhas Mães e Meu Pai (The Kids Are All Right, EUA, 2010) de Lisa Cholodenko

JACKASS 3D


Se existe um bom motivo para assistir a sequência de quadros com as tradicionais bizarrices do grupo Jackass (com boa parte formada por dublês ou artistas de circo) no cinema é como o diretor Jeff Tremaine resolve utilizar a “moderna” inserção do 3D no filme para chocar ainda mais o seu público. Mas no geral, Jackass 3D é uma versão requentada, sem tanta criatividade para passar dos limites do ridículo dos outros dois "filmes" do grupo.

A temática da adaptação da série exibida na MTV na última década já justifica a inserção ao absurdo através do 3D. Pode imaginar qualquer coisa (eu disse qualquer coisa!) voando pela tela e passando bem perto de seus olhos. Por outro lado, falta imaginação e criatividade na criação desses quadros. Já vimos Steve-O passando por, digamos, situações fisiologicamente grotescas e Johnny Knoxville sendo literalmente atropelado por um touro furioso. A graça acaba.

Em poucos momentos o grupo sabe brincar com a mesmice. Reconhece a saturação da fórmula e adapta suas velhas saídas para o riso. Funciona. Mas, desde sua ascensão nas MTV, Jackass só agrada um pequeno nicho. Tudo vai depender do seu gosto, paciência e estômago para ver o filme até o fim.


Jackass 3D (Idem, EUA, 2010) de Jeff Tremaine

SCOTT PILGRIM CONTRA O MUNDO


As críticas a adaptação cinematográfica da HQ Scott Pilgrim contra o Mundo falam sobre o poço de referências e o culto a cultura geek, mas notei que poucos citaram como a transposição da identidade visual de pilares deste nicho como os videogames, programas de TV e os quadrinhos foram idealizados e construídos pelo diretor Edgar Wright. O filme tem a força da genuinidade por justamente se assumir como um conjunto de retalhos e criando, assim, uma nova identidade para uma história simples e uma divertida imersão num de jogo de adivinhação de onde cada tirada do filme vem.

Wright vai além dos enquadramentos e a divisão da tela para remeter às histórias em quadrinhos. Seus movimentos de câmera dão impressão de estarmos com a mesma noção de profundidade que temos ao ver/ler um gibi e no momento certo, manipula, inverte tudo que havia construído. Contemporâneo e peculiar, Scott Pilgrim parece voar e acontecer na velocidade que seu público responde mensagens via celular ao mesmo tempo em que capta a bagagem pop que o filme possui.

E o grande êxito de Scott Pilgrim é que nada é feito com o propósito de criar uma obra/produto com identidade a partir influências incrustadas, e sim criá-la baseada em pilares ou ícones de possível assimilação e reconhecimento do nicho, digamos, “homenageado”. E assim, Edgar Wright acerta mais uma vez e cria nova dimensão e interpretação da linguagem cinematográfica. Mesmo que crie barrigas no andamento do filme ao saturar a fórmula, ver o baixista nerd Pilgrim derrotar os ex-namorados de sua amada é divertidíssimo.

 
Scott Pilgrim contra o Mundo (Scott Pilgrim vs. the World, EUA/Canadá/Inglaterra, 2010) de Edgar Wright

ONDINE


Ondine é o paralelo entre a magia da infância e o pesadelo da vida adulta. Neil Jordan chega a arriscar algumas inserções de seu cinema, mas fica mesmo na cartilha batida de elementos que constroem um cenário fantástico. O filme conta a história do pescador Circus, que literalmente pesca a garota Ondine. A filha do pescador acredita que se trata de uma criatura do mar dando margem para criar alusões sobre a distância entre sonho e realidade.

Jordan conduz esse paralelo delicadamente por boa parte do longa, tanto que traça um limite claro para não ser ultrapassado, motivado pela abrangência de idade do público alvo que Ondine tem. Numa mesma sequência o diretor põe assuntos ditos delicados – com inteligência - como alcoolismo e sexo no mesmo patamar que contos de fadas e o imaginário infantil.

Às vezes essa tendência parece irregular e não é congruente ao ritmo do longa, que em seus minutos finais parece virar ao avesso para justificar uma saída mais real, reflexiva, mesmo que isso corra o risco de destruir toda aura fantástica do filme. Mas Jordan consegue contornar com clichês que nunca pareceram tão compatíveis com um roteiro.


Ondine (Idem, Irlanda/EUA, 2009) de Neil Jordan

MINHA TERRA, ÁFRICA


 Maria (Claire Denis) mora em um local devastado pela guerra civil. Em qualquer esquina, é possível ver rastros de violência. Ela tem uma plantação de café e se  mudar está fora de cogitação, pois alega ter laços sentimentais com o local. O café produzido por Maria, segundo os locais, não é consumido por eles. Esta é a saída para distorcer a visão sob a tensão racial em Minha Terra, África.

 O único canal que assume a voz dos “rebeldes” é uma estação de rádio que toca música jamaicana e assume postura radical sobre os conflitos. Maria e sua família, composta apenas por brancos podem atrair a segurança e reiniciar o banho de sangue. Maria representa a coragem. André, seu ex-marido, a submissão. O filho deles, a personificação da situação por completo. A linguagem cinematográfica de Claire Denis parece empacotada na plástica, mas não é. A câmera na mão seria uma saída fácil para aumentar essa tensão, mas nas mãos da diretora, o dispositivo serve para captar uma silenciosa catarse.

 Nas brechas é que a diretora constrói o emocional dos personagens e no último ato solta o pino da granada. Imprevisível e sem um senso de justiça – como a vida é – Denis explora os dois extremos da moeda. Não existe bandido e mocinho. Muito menos o que é certo e errado numa guerra onde a tensão racial está acima de qualquer ato. Ordinário apenas na casca e por alimentar uma narrativa linear, o longa guarda em muitas sequências sugestões para bons e longos momentos contemplativos.

 
Minha Terra, África (White Material, França, 2009) de Claire Denis

OS AMORES DE UM ZUMBI


Pouquíssimos são os filmes produzidos no Haiti. Chegar por aqui é quase um milagre. Os Amores de um Zumbi comprova tal fato, com salas lotadas nas exibições na 34ª Mostra de Cinema de São Paulo. E o diretor Arnold Antonin parece correr contra o tempo e utilizar o dispositivo para fazer um afobado panorama sobre o país.

Com pouquíssima infra-estrutura, o longa elimina a decupagem e trabalho de câmera. O que dá pra fazer, Antonin executa. Só que é muito importante para o andamento do filme saber se o diretor está levando sua história a sério. E parece uma arma do diretor brincar com essas intenções. Dentro da história de amor regido por um zumbi e uma mulher que vive em dúvida entre seus desejos ou a doutrina religiosa, Antonin vai do protesto político ao completo deboche com sua falta de estrutura e seus atores totalmente despreparados.

Nesta dicotomia, o Haiti é desconstruído através de hábitos e tramóias de políticos, sem deixar que a bizarra historinha de amor seja deixada em segundo plano. É uma pena, já que essa ausência de preparo da equipe só impede que o filme se desenvolva sem tantos problemas de ritmo. Em certa altura, fica mais interessante saber se Os Amores de um Zumbi é uma bobagem gigantesca ou um pequeno achado.

Os Amores de um Zumbi (Les Amours D'Un Zumbi, Haiti, 2009) de Arnold Antonin

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