Noite Sem Fim (Jaume Collet-Serra, 2015)




A linha reta é o caminho mais longo para ir de um homem a outro, a proximidade é uma ilusão; o face a face, um perigo; o amor, uma tirania. (Dodeskaden, Akira Kurosawa, 1970).

Para o bem ou para o mal, Noite Sem Fim é um filme enganoso. Pois, se a premissa, muito próxima a de Sem Escalas (2014), filme anterior de Jaume Collet-Serra – homem de moral execrada em busca de redenção em microcosmo repleto de anti-heróis -, indicara um modelo narrativo próximo ao absurdo, Noite Sem Fim se agarra apenas à freneticidade durante sua primeira hora como forma de encurtar uma linha de encontro. Neste espaço, Collet-Serra sonega suas intenções enquanto justifica o enredo composto por aparições – uma teia de personagens é tecida entre tantos cortes e propicia uma reunião relâmpago que possibilita ao diretor em uma só sequência afirmar a posição deslocada destes homens na sociedade; alguns por opção, outros, não. Alguns vivos por necessidade, outros, entregues ao tempo.

É um tipo de cinema indefectivelmente feito de corpos e como eles dominam o espaço urbano com suas necessidades, da mobilidade ao vício, mas que provém espaços para o desenho de um estado de espírito tal qual o de Abel Ferrara em O Rei de Nova York (1990) sobre Nova Iorque fragilizada pelo crime e em constante alerta, antes das medidas tomadas por Rudolph Giuliani a partir de 1994. Estes espaços em Noite Sem Fim medem o estado de tensão e terror após os atendados de 2001 sem que ele tome o papel de protagonista. As ruas refletem a busca incessante da imprensa por culpados e a (hoje) iminente justiça, observadas com distância suficiente para encarnar o antagonismo. Porém, a lacuna principal e que rege o filme é a da figura paterna deixada por Jimmy (Liam Neeson), onde seu contraponto, Shawn, vivido por Ed Harris, encarna um tipo de representação mutante muito comum na filmografia de Jaume Collet-Serra, em especial como ela serve de pilar para todos os seus filmes, sempre cambaleantes na corda da ética. Harris remete a mesma brutalidade e cinismo de William Walker, talvez o grande papel de sua carreira, em Walker (Alex Cox, 1987).

A história de ascensão moral de Jimmy acompanha o arquétipo de busca e fuga pelas ruas de Nova Iorque com licenças e referencias que levam a câmera de Serra do Madison Square Garden ao Brooklyn e desemboca em um conjunto habitacional muito similar ao inferno futurístico de Dredd (Pete Travis, 2012), onde se encerra a primeira metade do filme e que mais transparece a influência dos games na narrativa. A ideia até este momento é que Nova Iorque é um calabouço cercado pelas luzes de uma tempestade. Entre a penumbra e sombras, o que se vê além de rostos em planos fechados, são rastros de bala e luzes de neon. E o giro da trama vem, como em Sem Escalas, pela ética, que ganha outra face como sonegação de sentidos ao filme: a correria agora é outra.

Cai por terra a noção de que pulsa um Estado ao redor de Jimmy e suas obrigações profissionais e morais exercendo a função de contracampo permanente; o quebra-cabeças ganha frouxamente suas peças fundamentais, cheias de sentimentalismo e o raciocínio constante de um filme de sugestões se vai na afirmação de vida do protagonista, este que sempre foi dado como morto – financeiramente, moralmente, profissionalmente. O tom fabuloso motriz que justifica qualquer resvalo ao absurdo segue a mão contrária de uma pista que encontra sua bifurcação.

Há espaço para tentativas sem fôlego de bons momentos, como a sequência de tiroteio entre vagões (há um mundo de referências nesta cena, dos westerns aos tiroteios entre contêineres de filmes contemporâneos), mas Noite Sem Fim corre desenfreadamente para colocar os pingos nos “is” seguindo a cartilha da redenção de um homem cercado de erros. Moral e justiça estão, novamente, à frente de qualquer simbologia sobre renúncia e recomeço. A sedução que Collet-Serra construíra em forma de atmosfera sufocante se diluí na lembrança (ou a falta de) e que volta a enganar ao construir dois epílogos, suportados por um tipo de relação artificial, tão artificial quanto o local que Noite Sem Fim habitou, tão superficial quanto o convívio de toda teia construída para obter o que interessa a cada um deles, o que de certa forma resume o nosso tempo: além do ego, só existem sombras.

Texto publicado no Multiplot!

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